Autor de livro sobre Caso Richthofen destaca fatos desperdiçados por filme
Desdobramentos do crime são dignos de minissérie ou novela policial de 200 capítulos, algo que produção estrelada por Carla Diaz deixa de lado
Dois filmes sobre Suzane von Richthofen com duração de uma hora e meia cada fizeram sucesso de público, mas vêm fracassando na crítica. Não precisa ser especialista para descobrir por que “A menina que matou os pais” e “O menino que matou meus pais”, disponíveis em streaming no Amazon Prime Video, decepcionaram.
Conforme dito no material de divulgação, as duas atrações se limitaram a encenar os depoimentos de Suzane e Daniel Cravinhos dados no Tribunal do Júri. Ou seja, os roteiros de Ilana Casoy e Raphael Montes (“Bom dia, Verônica”) ficaram restritos às teses de defesa criadas pelos advogados dos dois assassinos confessos.
Na busca da menor pena possível, por estratégia jurídica, Suzane e Daniel se acusaram mutuamente. Transportado para os filmes dirigidos por Maurício Eça (“Apneia”), o enredo criado por advogados não ficou coerente quando se fala em entretenimento justamente porque os dois filmes tentam, em vão, responder à seguinte pergunta: de quem foi a ideia de matar os pais de Suzane?
Se os roteiristas tivessem olhado com maior atenção para o trabalho da polícia, para os depoimentos de Andreas, irmão de Suzane, e até mesmo para o que disse em juízo Rinalva de Almeida Lira, empregada que limpou a cena do crime a mando de Suzane, a história deixaria de ser um filme raso para se tornar uma película densa e eletrizante. Até porque os desdobramentos dessa sinopse são dignos de minissérie ou novela policial de 200 capítulos, pois elementos dramáticos, mistérios, romances, personagens enigmáticos e reviravoltas não faltam.
Suzane, a protagonista, é uma personagem com muito mais camadas do que mostram os filmes. Essas nuances estão todas documentadas nos autos. O policial militar retratado nas primeiras cenas dos dois filmes entrando na mansão e se deparando com Manfred e Marísia von Richthofen, mortos por Daniel e Cristian Cravinhos, é Alexandre Paulino Boto.
Enquanto ele passeia pelos cômodos, Suzane e Daniel tentam emplacar a tese de que a casa foi assaltada. Boto sai lá de dentro e comunica a Suzane que seus pais estão mortos. Segundo relato do policial, nesse momento, ela amarra o cabelo num coque, arregaça as mangas e pergunta sem derramar uma única lágrima quais providências ela deveria tomar imediatamente. O filme desperdiça essa cena importantíssima para mostrar o perfil frio da assassina.
A delegada Cíntia Tucunduva conduziu as investigações e deixou todas as suas impressões registradas nos autos do processo que foram usados no roteiro dos filmes. Ela disse ter ficado chocada com a forma com que Suzane confessou ter matado os pais.
"Sem derramar uma única lágrima, ela disse: ‘Sou uma pessoa horrorosa. Eu mandei matar os meus pais.’ E ela só confessou depois de ler o depoimento do namorado, confessando minutos antes ter executado Manfred", explica.
Essas cenas também foram desprezadas pelos roteiristas. Se as informações estivessem no filme, a tese de que um manipulou o outro não ficaria de pé.
Outros dois episódios emblemáticos passaram longe e também serviriam para mostrar Suzane como personagem sob a ótica de terceiros. Daniel e Cristian mataram Manfred e Marísia nas primeiras horas de 31 de outubro de 2002, uma quinta-feira. Meia hora depois do crime, Suzane e Daniel estavam na suíte presidencial de um motel. No sábado, ela enterrou os pais pela manhã e à tarde fez uma festa para comemorar seu aniversário de 19 anos. No meio da balada, a delegada Cíntia e quatro investigadores bateram na porta da mansão para coletar novas provas, e Suzane os atendeu com simpatia vestindo apenas um biquíni.
"Ela tinha um cigarro numa das mãos e uma lata de cerveja na outra. Nos recebeu no meio da festa e apresentou a cena do crime como se fosse uma guia de turismo", relata a delegada.
Essa cena imperdível o telespectador também foi privado de assistir, apesar de estar nas mais de 14 mil páginas que compõem o processo penal que condenou os três assassinos a quase 40 anos de prisão.
Se o depoimento de Andreas fosse incluído no roteiro, os filmes teriam mais emoção, pois o garoto de então 14 anos visitou a irmã na cadeia na época do crime e abraçou os assassinos dos seus pais mesmo depois que a verdade foi descoberta. Só na época do julgamento, já aos 18, ele concluiu que foi manipulado pela irmã e travou uma disputa pela herança. Ele recebeu bens avaliados em R$ 10 milhões. Hoje, não tem contato com Suzane.
Se fosse uma novela ou seriado, os filmes sobre a menina que confessou ter matado os pais para ficar com a herança estariam rendendo capítulos e novas temporadas até hoje. No cárcere, Suzane enfrentou uma rebelião, seduziu um médico, uma diretora do presídio e um promotor público e roubou Sandra Ruiz do beliche de Elize Matsunaga. Sandrão sequestrou uma criança, filha de uma amiga, pegou o dinheiro do resgate, mas matou a vítima mesmo assim. Cobiçadíssima, apaixonou-se por Suzane e depois se disse usada por ela: “Ela só queria proteção na cadeia”.
Depois de Sandrão, Suzane engatou romance com o marceneiro Rogério Olberg, irmão de Luciana, sua colega de cela. Luciana, seu marido e um amante — todos boxeadores — estupraram duas crianças, meias-irmãs dela, dentro de casa. Rogério terminou o romance e foi embora. Nas saidinhas da prisão, Suzane continua frequentando o lar dos Olberg a convite de Josiely, irmã de Rogério, esteticista, que acolhe a assassina porque, segundo disse, Suzane está regenerada e merece uma chance.
Outro personagem que poderia ter uma novela só para ele é Cristian Cravinhos (nos longas, é quase um figurante). Numa das saídas da cadeia, ele conheceu uma bancária, casou-se e teve uma filha. No entanto, no pavilhão de Tremembé, conheceu um jovem, Duda, e iniciou um romance homoafetivo. Quando descobriu a traição, a bancária fez um barraco no pátio da penitenciária digno de folhetim. Solto em 2018, Cristian largou a namorada e o namorado e começou um novo romance com uma garota de 18 anos. Ao ser flagrado violando o regime aberto, tentou subornar policiais e acabou preso novamente em 2019. Ganhou mais quatro anos de cadeia e voltou para o regime fechado.
Herança e fraude
Daniel é o único personagem que conseguiu se manter longe dos holofotes. Ele saiu da cadeia há três anos e se casou com uma biomédica, filha de uma carcereira. Ele tenta ser pai e conseguiu até tirar o sobrenome Cravinhos dos documentos. “O nome ficou muito marcado e não quero que meu filho carregue esse estigma”, justificou. Hoje, dá aulas de aeromodelismo no Parque Ibirapuera, como fazia quando conheceu Suzane.
No novo plot de Suzane, a palavra-chave é “recomeço”. Presa há quase 20 anos, ela passou recentemente no vestibular para o curso de Farmácia numa universidade particular — conseguiu financiamento pelo Fies —, e estuda em Taubaté, cidade vizinha a Tremembé. Suzane herdou da avó paterna um apartamento avaliado em R$ 1 milhão, mas, porque recebeu de maneira fraudulenta uma pensão do INSS pela morte dos pais, tem que resolver esta pendência na Justiça antes de passar o imóvel para seu nome. Farmácia é o mesmo curso feito pelo seu irmão, Andreas.
Suzane vai à aula todos os dias usando transporte de aplicativo, mostra-se uma aluna aplicada e foi até bem recebida pelos colegas de classe. Na primeira aula, porém, com medo de represálias, a estudante chegou à faculdade escoltada por dois advogados. “Somos implacáveis com quem persegue clientes sob a nossa defesa,” avisou Adriana Nunes Martorelli, a mais nova defensora da assassina e integrante da nova temporada da vida de Suzane. Agora é aguardar cenas dos próximos capítulos.
*Ullisses Campbell é autor de “Suzane: Assassina e manipuladora” e “Elize Matsunaga: A mulher que esquartejou o marido” (Matrix Editora)