Dedo duro da ditadura? O Simonal que o filme não mostra
Prestes a estrear, o filme "Simonal" foca no talento e na música desse grande artista e ignora fases polêmicas da sua vida, como a acusação de sequestro
Por Gabriela Mendonça |
Nos anos 1970, quando estava no auge da carreira, Wilson Simonal viu seu nome nas manchetes de jornais, mas não por conta de um novo lançamento, ou um show de sucesso. O cantor foi acusado de sequestro por seu antigo contador, demitido de sua empresa meses antes.
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O sequestro – executado por agentes do DOPS, órgão de censura da ditadura – o colocou numa posição fragilizada e o deu a fama de dedo duro. Simonal ficou para sempre marcado como um apoiador do DOPS e nunca mais conseguiu recuperar sua carreira, morrendo em 2000 no ostracismo.
Nos últimos 20 anos, porém, tanto os filhos quanto outros artistas buscam reviver a memória do cantor, focando em seu talento e sua marca na música brasileira. É com isso em mente que será lançado, na próxima semana, “Simonal”, filme dirigido por Leonardo Domingues e com Fabrício Boliveira no papel principal.
O filme reconta sua carreira, o casamento com Tereza Pugliesi (Isis Valverde), as crises pessoas e profissionais, para eventualmente citar o caso do dedo-duro. Apesar de tentar “livrar sua barra” ao esclarecer os fatos, o longa deixa de fora a essência do cantor.
Crise
“Eles também me criticaram quando eu cantei o hino nacional”, diz Elis (Lilian Menezes) para apoiar o amigo que responde que ela não é branca, portanto os parâmetros não são os mesmos. Ele não está errado, mas nada no desenvolver na narrativa destaca isso. Essas pinceladas servem como gancho narrativo para pequenos momentos, como quando canta Tributo a Martin Luther King na TV e dedica ao filho, mesmo sem nunca falar com ele sobre o que é ser negro Brasil afora.
Em determinado momento, quando a fama de “ dedo duro ” já se espalhou, ele tenta ir a um restaurante com Tereza, mas é barrado. Uma cliente lhe aponta o dedo e o chama pela alcunha que a mídia criou, citando que ele envergonha a classe e artistas como Gil e Caetano. “Eu sou amigo do Gil e do Caetano”, ele responde, mas nunca vemos esses momentos acontecerem. Os dois nomes da Tropicália não são mencionados antes.
Você viu?
Simonal foi um artista brilhante. Abriu espaço em uma indústria que não dava oportunidade para pessoas como ele, se destacou, foi o primeiro a criar a própria gravadora, fez músicas que marcarão a música brasileira por anos. Era respeitado e admirado por seus contemporâneos, e atingiu um nível de prestígio que serviu como referência para muitos artistas negros que vieram depois.
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Mas ele também manteve uma boa relação com um agente do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), administrou mal sua gravadora, abriu mão de opiniões políticas e, ao contrário de seus contemporâneos, não tomou partido. É possível – e provável – que essa decisão tenha sido pensada de forma a preservar sua carreira, mas não temos como saber isso, porque o filme não mostra.
Esses pontos são citados no longa de maneira superficial, tentando apagar esse aspecto de Simonal. Quando ele recebe um amigo do passado ouve dele que seu comportamento tem que mudar, que ele tem que se posicionar. O amigo tem como resposta uma oferta de dinheiro, como esmola. O filme, assim como Simonal, não toma partido, e fica em cima do muro, sem se aprofundar demais em nenhum aspecto de sua vida.
De cima do muro vemos sua relação com Tereza, a ascensão de sua carreira, o único momento em que decide ser político e canta a música para MLK e a consequência dessa apresentação, uma visita ao DOPS (“eu canto para gente da esquerda, nem por isso me considero comunista”).
Essa falta de perspectiva pouco faz para mudar a visão que se tem de Simonal. A situação com o DOPS e seu contador parece quase como uma “trapalhada” de um jovem inconsequente, e as pinceladas pela carreira, apesar de destacarem seu brilhantismo, não exaltam seu talento. “O Simonal que eu queria mostrar é aquele guerreiro que, apesar das adversidades, continuou até o fim da vida batalhando para contar a história dele”, explica o diretor do longa.
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Mas a situação com o DOPS acontece no fim do filme, e toda a história contada antes faz pouco para esclarecer os fatos. “ Simonal ” deve ser lembrado por seu talento, seu carisma, a risada fácil que aparecia no meio de uma canção e os muitos sucessos como Sá Marina , Nem Vem que Não Tem ou Meu Limão, Meu Limoeiro , mas também merece uma biografia que lhe nuances e não tenha medo de pintá-lo como vilão e herói.