Menos inspirado, "O Mecanismo" retorna tentando equilibrar ideologias

Criação de José Padilha para a Netflix volta para o 2º ano aprofundando visão dantesca da política nacional, mas mostra que sentiu as críticas

Logo na largada da 2ª temporada de “O Mecanismo”, série da Netflix sobre os bastidores da Operação Lava Jato, o ex-policial Marco Ruffo (Selton Mello), que é o narrador da produção, diz que é chamado de “fascista” se aponta corrupção na esquerda e de “esquerda caviar” se faz o mesmo na direita. Mais tarde ele reforça: “Ideologia é uma merda”.

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Cena de O Mecanismo: empreiteiros na mira da Lava Jato

Este é o signo do segundo ano da comentada produção criada e assinada por José Padilha em parceria com expoentes da produção do audiovisual nacional como Daniel Rezende e Elena Soarez. Tal qual o segundo “Tropa de Elite” está para o primeiro, o segundo ano de “O Mecanismo” está para seu anterior.

Ainda no primeiro episódio – são oito a compor o segundo ciclo – a frase “estancar a sangria” que detonou fortes reações no primeiro ano ao ser atribuída ao ex-presidente Higino (Arthur Kohl) é posta na boca do personagem inspirado em Aécio Neves, o senador e candidato derrotado nas urnas em 2014 Lucio Lemos (Michel Bercovicht).

O segundo ano da série é muito mais engessado no discurso, preocupado em não pisar em calos ideológicos, do que comprometido com o vigor narrativo do primeiro ano – que tinha suas falhas, mas era mais independente criativamente.

Aqui há diálogos pensados para evitar cara feia e até mesmo uma metáfora visual desnecessária – Ruffo chega a criar um castelo de cartas e usar o jogo canastra para explicar a longeva sistemática de corrupção em vigor no País. De toda forma, o aspecto primordial da série – a visão dantesca de José Padilha para o jogo político no Brasil – segue como norte absoluto da trama.

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“O inimigo agora é outro”

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Selton Mello e Enrique Diaz se encaram em cena de O Mecanismo

Na segunda temporada os investigadores da Lava-Jato se deparam com a politização da operação e muitos não sabem exatamente como lidar com isso. Os conflitos pessoais desses personagens, intrínsecos à complexidade da operação ou extemporâneos a ela, são alguns dos bons valores desenvolvidos pelo segundo ciclo. Especial atenção para a ciranda amorosa envolvendo a delegada Verena (Carol Abranches), o agente Vander (Jonathan Haagensen), o procurador Claudio (Lee Taylor) e sua esposa e também procuradora Renata (Karla Tenório).

A série abraça a tese de que o PT “dormiu com o inimigo” e que o PMDB, hoje MDB, percebeu a cisão na base do governo e patrocinou a queda de Janete Ruscov (Sura Berditchevsky) e a prisão de Higino em uma manobra para preservar o mecanismo e entregar algum resultado para a operação mais ampla de combate à corrupção no País.

É uma boa tese, mas que a série alinha com pouca imaginação devido às tantas amarras ideológicas que precisa dar conta para não envergar. É um flagelo autoimposto. Outro problema é o personagem de Selton Mello. Totalmente deslocado da ação, a série precisa achar meios de inseri-lo narrativamente no que está acontecendo e isso nem sempre funciona bem, ainda que o episódio dedicado a sua ação na tríplice fronteira seja isoladamente bastante satisfatório.

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A face menos oculta da lei

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O juiz Rigo em O Mecanismo: obsessão por justiça que esgueirou pela politização?

Um dos pontos mais interessantes do novo ano, que corre mais com os eventos do que no primeiro ciclo, é a maneira como Padilha trabalha a figura de Moro, aqui na pele do juiz Rigo e vivido pelo ator Otto Jr. Padilha vê um juiz seduzido pela notoriedade e que aceita o antagonismo com a figura de Higino e até mesmo se compraz dele.

É um arco interessante, e ainda que Padilha pese a mão algumas vezes, fornece boas possibilidades para o futuro da série, caso a terceira temporada seja confirmada.

Como "O Mecanismo" é uma série cara e complexa e de interesse muito regional, o terceiro ano pode não vir. De todo modo, o desfecho dessa temporada funciona como um series finale digno e compatível com o discurso político do cineasta.