Incêndio do Museu Nacional promove apagamento da memória latino-americana
Com 90% do acervo perdido, incêndio do Museu Nacional é a maior tragédia cultural do Brasil e revela descaso com a memória nacional e latina
Em setembro de 2018 o Brasil presenciou uma de suas maiores tragédias culturais. O incêndio do Museu Nacional , localizado na Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro, deixou em chamas um legado de 200 anos. Entre coleções de biologia, paleontologia, egiptologia e muitas outras, ainda não é possível quantificar o que foi perdido, mas sabe-se que parte da cultura e história nacional se foram para sempre.
O incêndio do Museu Nacional destruiu cerca de 90% dos 20 milhões de itens, entre múmias egípcias, espécimes da fauna e da flora nacional e fósseis. Parte desse acervo começou a ser criado ainda no Primeiro Reinado, após o casamento de D.Pedro I e a Imperatriz Leopoldina, que veio para cá com um grupo de naturalistas e pesquisadores europeus que começaram a coletar e catalogar plantas e insetos.
Entre todos os bens materiais que se foram, algo imaterial também se perdeu no fogo: parte da memória latino-americana. “Isso é que nem extinção”, comenta o bioantropólogo Walter Alves Neves.
A primeira mulher
A história contemporânea das Américas é conhecida e disseminada: Cristóvão Colombo, em busca de novas rotas para chegar as Índias, alcançou o continente americano. Desde então, vimos a colonização europeia no continente, que se deu de diferentes formas, dos portugueses no Brasil, aos ingleses nos EUA.
Mas, os primeiros registros de povos no continente datam de mais de 11 mil anos, o que significa um longo período na história das Américas que é pouco explorado. Os esforços de conhecer esse passado, porém, sempre estiveram presentes entre historiadores, paleontólogos e antropólogos, que se dedicaram ao estudo dos povos que aqui viviam.
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Faz parte dessa população Luzia, fóssil mais antigo encontrado no Brasil e queimado no incêndio. Luzia foi encontrada nas escavações de Lagoa Santa (MG) nos anos 1970, e se tornou referência no estudo dos povos americanos. “Até a Luzia, a pré-história brasileira não tinha um ícone”, explica Walter, que foi um dos responsáveis por seu estudo.
Walter explica que, além de abrir novas possibilidades sobre a colonização americana e a memória da América Latina, Luzia representa uma ponte entre a comunidade acadêmica e a população em geral. “Isso facilita muito o diálogo entre a pesquisa científica e o grande público”, comenta.
Estudar Luzia é compreender de onde viemos, literalmente. Depois de pesquisar o fóssil mais antigo do país e de todo o grupo encontrado em Lagoa Santa, Walter desenvolveu uma tese que aponta para uma migração africana no continente. “Meu modelo é chamado de modelo das duas migrações – o cerne é que primeiro entrou na América o povo de Luzia, que tem uma morfologia craniana muito parecida com os africanos e australianos atuais. Essa leva colonizou a América toda e só uns dois mil anos depois é que entrou na região a população que é ancestral dos índios atuais”, explica.
Perder esses fósseis significa apagar parte de nossa memória cultural. “O patrimônio cultural amplia a visão que temos de nós mesmos. Nossa identidade cultural, nosso patrimônio cultural abrange uma amplitude de acervos e de olhares muito mais diverso que o histórico que é feito por uma elite branca”, explica a historiadora Malu Eleutério, professora de Patrimônio Histórico da FAAP.
Esses estudos comprovam justamente uma diversidade cultural anterior a colonização europeia, berço do modelo de sociedade que vivemos hoje. “Um ponto fundamental em relação à América seria uma consciência de uma América antes da ‘invasão’. Uma visão de quanto os índios contribuíram”, complementa Malu.
A historiadora comenta que era os índios que tinham o conhecimento da terra e sua ajuda foi essencial para a sobrevivência dos colonizadores, indicando o que podiam comer, quais plantas serviam como medicamento, como navegar pelos rios, etc.
Memória latino-americana
“Uma memória foi apagada irrecuperavelmente. Tanto aquela que permitiria reconstituir um passado que ainda não sabemos, quanto os testemunhos do que já era conhecido”, comenta a antropóloga Ana Claudia Marques, professora associada do Departamento de Antropologia da USP.
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Parte dos estudos, como os relacionados a Luzia, por exemplo, podem ter continuidade a partir do que já foi documentado. Outra parte, porém, se perdeu para sempre. “O Museu Nacional abrigava materializações da memória. O que representa uma peça de um museu? Ela faz parte de um acervo porque está revestida de uma originalidade, uma autenticidade e, de certa forma, ela nos proporciona um contato direto com um passado autêntico e original”, explica Ana Claudia.
Dentro do registro cultura, uma das perdas mais sentidas está no registro linguístico. O Museu tinha em seu acervo gravações de línguas indígenas que não são mais faladas. Essa memória, que não existia em nenhum outro lugar, se perdeu para sempre. Somente relacionado à população indígena, o acervo tinha mais de 40 mil itens, entre vestimenta, utensílios, armas, cocares e tecidos, muitos deles usando plantas que nem existem mais. “O que estamos perdendo é o futuro do conhecimento”, pontua Malu.
A história da história
O Museu Nacional existe desde 1818, mas era localizado no Campo de Santana, no Centro do Rio de Janeiro. Foi só em 1892 que ele se transferiu para o prédio que ocupava até hoje. Antes, o Museu era uma das residências oficiais do Império.
Além da Imperatriz Leopoldina, que teve grande contribuição no desenvolvimento do acervo, D. Pedro II também colaborou ao adquirir itens de arte egípcia, romana e grega. Entre a arqueologia egípcia, o Museu reunia o maior acervo da América Latina. Hoje, mesmo que voltasse a fazer escavações, não poderia mais tirar itens similares de seus países de origem.
Memória desprezada
Hoje no Brasil existe apenas um núcleo dedicado ao estudo da América Latina, e isso é parte do problema. Nildo Ouriques, presidente do IELA (Instituto de Estudos Latino-Americanos), comenta todas as grandes universidades americanas, europeias e chinesas tem um núcleo do tipo. Aqui no Brasil, a UFSC é a única que possui um órgão nesses moldes.
“Nós estamos submetidos, na América Latina, a um colonialismo intelectual terrível”, comenta. Para Nildo, esse tipo de conduta implica no desconhecimento de nossa própria história e “desprezo olímpico por ela”. “O Museu Nacional é uma instituição que não apenas abrigava um acervo, mas produzia ciência e conhecimento”, complementa Ana Claudia. E esse conhecimento precisa ser incentivado para que, no futuro, algo do gênero não se repita.
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O incêndio é uma tragédia sem precedente na cultura brasileira, e resultado de um descaso generalizado com a produção de conhecimento brasileira. “Tem que estimular as pessoas a pensarem que essa é a nossa história, frequentar esses lugares, estimular visão crítica e a sensação de pertencimento em relação ao Brasil e a América Latina”, sugere Malu para evitar que algo do gênero se repita no futuro.
O futuro após incêndio do Museu Nacional
Na última sexta-feira (18) a direção do Museu anunciou que conseguiu recuperar boa parte do fóssil de Luzia, que estava em cofre. "Acreditamos que será possível recuperar quase todo o material encontrado: 80% do crânio que existia está visível e o restante ainda será trabalhado. Vamos finalizar a higienização, estabilizar e, a partir daí, reconstituir", anunciou Claudia Carvalho, coordenadora da equipe de resgate. Outros itens estão em processo de recuperação, mas a direção do Museu não sabe precisar o que será recuperado.
De qualquer forma, estudo futuros sobre o nosso passado serão comprometidos pela perda de um material que não tem similares em nenhum lugar. “Isso não significa que as pesquisas não terão continuidade. Decerto as teses abertas pelo achado de Luzia terão prosseguimento e outros achados se acumularão. Decerto a pesquisa e a produção de conhecimento continuará”, comenta Ana Claudia.
Ela defende os profissionais que lá atuavam e seus esforços para recuperar o que fosse possível e não deixar essa memória se perder. “Essas atitudes e essa atmosfera lograram proteger e preservar o Museu Nacional até aquele dia, mas infelizmente não conseguiram impedir as chamas ateadas pela indiferença e irresponsabilidade dos nossos atuais governantes, que assassinaram o Museu por asfixia”, conclui.
Diversas entidades internacionais se prontificaram a auxiliar a reerguer o Museu. A embaixada alemã enviou ao Brasil especialistas em restauração enquanto a Europa ofereceu auxílio financeiro. Mas, com cerca de 90% destruído, pouco resta para restaurar. O prédio, claro, pode ser recuperado, mas vai ser necessário começar do zero.
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Em 2018, vai ser preciso iniciar uma nova história depois do incêndio do Museu Nacional . Quem sabe dessa vez, priorizando a memória nacional e latina, pensando no futuro sem esquecer do passado.