Colorismo é debatido fora da militância e pode mudar os rumos das artes visuais
Incidente recente envolvendo Fabiana Cozza e Dona Ivone Lara no teatro trouxa à luz o debate sobre colorismo, com voz para negros retintos
“Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta (...), acordar ‘branca’”, disse Fabiana Cozza, sambista e, até o começo de junho a escolhida para interpretar Dona Ivone Lara em um musical que estreia em setembro no Rio de Janeiro. A artista renunciou ao papel dias depois de seu anúncio, quando um debate sobre colorismo tomou conta da internet.
Houve quem criticasse a escolha de Cozza por conta de seu tom de pele, mais claro que o de Dona Ivone, e teve quem a defendesse pela afinidade com a artista homenageada e pelo seu talento para o papel. De uma maneira ou de outra, o acontecimento gerou um debate inédito no Brasil sobre colorismo .
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O termo, cunhado pela escritora Alice Walker em 1982, autora de “A Cor Púrpura”, tinha pouco espaço nos debates raciais fora da militância negra. Nos últimos anos, porém, o tema ganhou mais atenção na mídia e chegou até séries de TV, como “Dear White People”. No Brasil, porém, mesmo com uma população de 54,9% (mais 122 milhões de pessoas) que se considera negra ou parda, o tema parecia relegado a segundo plano, até o acontecido com Cozza em junho.
“O colorismo é fruto do racismo ”, comenta Ana Paula Xongani. A empresária e comunicadora tem um canal no Youtube onde fala dos mais diversos temas, desde sua vida como mãe, até maquiagem e cabelo, amor próprio, racismo, saúde e feminismo. Ana Paula confessa que tem dificuldade em encontrar personalidades com quem se identifica no entretenimento.
Pluralidade
O debate gerado pela escolha de Cozza remete a uma realidade enraizada no Brasil: quanto mais escura a cor da pele, mais difícil conseguir espaço no entretenimento. “O tanto de melanina que ela (Dona Ivone Lara) carrega faz parte da história dela. Sua imagem conta uma história”, comenta Ana Paula.
Ela explica que hoje a representação da mulher branca é plural: loira, morena, ruiva, etc. Enquanto a negra não essa mesma pluralidade. A jornalista Juliana Gonçalves corrobora essa opinião, e vê no debate gerado pelo musical uma mudança de percepção: “Ficou bem nítido que os negros não são uma massa homogênea, somos múltiplos, diversos e diferentes entre nós”, comenta.
Juliana é ativista dos direitos humanos com foco em raça e gênero e integra a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial de São Paulo. Na época da renúncia de Cozza, ela escreveu um texto onde questionava como fazer esse debate sem silenciar negros retintos ou destituir negros claros da sua negritude. “Não é tarefa fácil porque exige exercício da escuta. Exige que seja possível sair do lugar comum da hierarquização dos corpos, das dores e da humanidade, imposto pela branquitude, um sistema de privilégios e de opressão transnacional existente em todo o mundo”, comenta.
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O colorismo nas artes
As produções nacionais, principalmente na televisão, dificilmente refletem a cor de pele do brasileiro. O exemplo mais recente é de “Segundo Sol”, novela das 21h da Globo que se passa na Bahia, estado com a maior população negra no Brasil, e com apenas um negro no elenco principal (Fabrício Boliveira).
Ainda há, de alguma forma, o consenso de que é preciso ter pelo menos um negro na produção, e o mais comum é que essa pessoa seja de pele clara. “Hoje a mídia descobriu que a negritude também é mercado consumidor, então vez ou outra escala-se uma atriz ou um ator negro para ocupar uma posição de representatividade. Esse fato, por um lado, é importantíssimo para a formação do imaginário nacional, mesmo que em cota mínima, mas por outro percebe-se muito fortemente que a questão da representatividade gera lucro e não é tratada com seriedade nas narrativas televisivas”, comenta a escritora Paloma Franca Amorim, autora de “Eu Preferia Ter Perdido um Olho”.
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Se há alguns exemplos quando se fala em artistas homens de pele retinta, quando se trata de mulheres, os números rareiam. Taís Araújo costuma entrar sempre em debates quando é necessário exemplificar, mas a atriz mesmo não faz uma novela desde 2014 com “Geração Brasil”.
Érika Januza foi uma exceção em “O Outro lado do Paraíso” ao interpretar uma mulher pobre que se torna juíza, mas ainda assim sua trama girava em torno do racismo que sofria da sogra – que ela perdoou no final, depois de todos os insultos que sofreu.
Depois dos debates em relação a “Segundo Sol”, personagens negros foram inseridos aqui e ali entre coadjuvantes, mas sem destaque. Das tramas no ar, os personagens negros de “O Tempo Não Para” são escravos, enquanto Milton Gonçalves é o único com história aprofundada. Em “Velho Chico”, de 2016, a versão mais jovem de Camila Pitanga foi interpretada por Julia Dalavia, uma mulher branca, enquanto Nanda Costa representou a “mulher da favela” em “Salve Jorge”, de 2013.
Sérgio Malheiros fará um personagem que luta pelos direitos dos negros em “Verão 90 Graus”, próxima novela das 19h, enquanto Marcello Melo Jr, Adriana Lessa e Aílton Graça são os únicos três negros confirmados entre os mais ou menos 30 nomes divulgados de “O Sétimo Guardião”, que substituirá “Segundo Sol”.
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Muito ainda precisa ser feito para mudar esse panorama e aumentar a representatividade na televisão, mas pelo menos o debate trouxe ao lugar de fala um grupo que raramente ganha essa chance: o de negros retintos. “Os negros no geral não têm o mesmo espaço midiático que os brancos, mas, entre os negros, até por serem bem menos em quantidade populacional, os retintos aparecem menos ainda. Isso é um fato”, explica Juliana.
“O debate do colorismo poucas vezes foi pautado por pessoas escuras. A maioria das vezes, negros de pele clara falam do colorismo como legitimação da negritude – o que é extremamente importante – mas estava pouco aprofundado por pessoas de pele escura, talvez pela própria opressão que o colorismo sugere”, completa Ana Paula Xongani. “Da mesma forma que a gente entende que as opressões silenciam de modo geral, entre os negros, o colorismo silencia os escuros”, conclui.
O futuro
O caminho é árduo, mas para que as oportunidades aumentem, é preciso fazer uma mudança estrutural. “A única coisa que separa uma mulher de cor das outras é oportunidade”, disse Viola Davis em seu discurso ao ganhar o Emmy de melhor atriz em 2015. Essa oportunidade deve ser estendida para todas as áreas, desde a concepção de um roteiro, figurino, produção e direção.
“Gostaria de saber se há representatividade/proporcionalidade negra nos níveis de articulação dos grandes meios midiáticos. Se quem está pensando a grade de programação, as diretrizes estéticas, a abordagem política dos temas da negritude na televisão é negro ou branco”, questiona Paloma.
Para evitar, por exemplo, que “Segundo Sol” não tenha atores negros, é preciso que, na concepção da novela tenham pessoas que alertem para o erro que estavam cometendo. Mas, mais do que isso, essas pessoas precisam fazer histórias que contemplem os negros em toda sua pluralidade.
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O colorismo é real e mantém os negros em um ciclo de restrição – pouca oportunidade – espaço para um negro claro – exclusão do negro retinto – que não beneficia ninguém, e passa uma falsa impressão de que a população brasileira é branca. Sintomático do racismo, esse debate já ganhou mais adeptos. Agora, ele precisa ser aprofundado para gerar mudanças.