“Mas você faz cinema, não política”. “Tudo é política”. A segunda frase é falada por Godard em “O Formidável”, filme de 2017 onde o cineasta é interpretado por Louis Garrel. Apesar de não ser possível determinar se a frase foi dita mesmo pelo cineasta, seu conceito representa bastante o que foi o Maio de 68.

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"O Formidável" retrata o período de 68, quando Godard rejeita seus trabalhos anteriores, em favor de um cinema de protesto

Período de grande efervescência social, o Maio de 68 refletiu em toda a sociedade e suas manifestações, inclusive artísticas. Godard, um dos mais celebrados cineastas franceses, foi um dos atingidos por essa onda revolucionária. Burguês, ele não estava entre as classes protestantes, mas sua ânsia por fazer parte da revolução fez com que ele chegasse a rejeitar seu elogiado trabalho antes do período, inclusive sua obra-prima “Acossado”, em favor de um cinema de protesto.

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Era contagioso. A sensação de impotência e insatisfação tomava a todos, que viram nessas primeiras manifestações que aconteceram na França como o estopim para uma mudança de paradigma.

No âmbito do cinema, é quase impossível exemplificar o efeito de 68. O período não influenciou apenas cineastas, como Godard, mas os movimentos que serviram e servem até hoje como material para filmes. O próprio Garrel já havia dado sua contribuição para o período em “Os Sonhadores”, queridinho cult de Bertolucci lançado em 2003.

É proibido proibir

A Tropicália foi um movimento que revolucionou a cultura brasileira. Na música, foi representada por Jorge Ben Jor, Os Mutantes, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Nara Leão
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A Tropicália foi um movimento que revolucionou a cultura brasileira. Na música, foi representada por Jorge Ben Jor, Os Mutantes, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Nara Leão

A música de Caetano Veloso, apresentada no Festival Internacional da Canção, em setembro de 1968, teve inspiração direta nos acontecimentos meses antes da França. A frase, inclusive, ficou famosa ao ser cunhada em muros por Paris.

Não por coincidência, surgia no Brasil a Tropicália, movimento artístico que inovou no estilo, abraçou a brasilidade, criticou a situação política do momento, e se estendeu para além da música, englobando as artes visuais e o teatro, por exemplo.

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Um ano antes, em 1967, o movimento começou a tomar forma no Brasil, puxado pela música. Da estética do movimento, destaca-se a miscelânea de referências, desde a música tradicional brasileira até as guitarras elétricas. Em 1968 o movimento chegou ao fim deixando um legado que se estende até os dias de hoje e deve persistir.

O Brasil, em 68, também enfrentava um período de contestação política e social, que culminou em muitos eventos, como o famigerado AI5 no fim desse mesmo ano, e a prisão e exílio de Gil e Caetano no ano seguinte.

A Tropicália não surgiu com a intensão de ser um movimento político. Nem surgiu intencionalmente, com o propósito de criar um movimento musical. Mas, assim como maio de 68 na França, surgiu da necessidade de entender a identidade nacional e fazer música que representasse o brasileiro.

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Você viu?

Erotica

A revolução feminista começa nos anos 1960 influenciou as artistas do pop que vieram depois
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A revolução feminista começa nos anos 1960 influenciou as artistas do pop que vieram depois

Mas maio de 68, abrangente como foi, ecoou em muitas vertentes das artes. Em 1992 Madonna lançou um livro chamado “Sex”. No mesmo ano, ela liberou seu quinto álbum de estúdio, intitulado “Erotica”. Na época, ela abusava das referências sexuais, falava palavrões em público e tinha uma atitude considerada rebelde. Alguns fãs, que não gostaram dessa fase, chegaram a dizer que a carreira da cantora acabaria, o que claramente não aconteceu.

Mas, para que nos 1980 e 1990 Madonna pudesse fazer sucesso para começo de conversa, houve quem pavimentasse seu caminho. E essas mulheres ganharam força nos 1960. O período não foi só de revolução política, mas também sexual. As mulheres começaram a mostrar seus desejos e a aparecerem como seres sexuais, que não necessariamente querem ficar presas a um parceiro.

O que hoje parece até óbvio, na época foi revolucionário. E permitiu que, anos depois, Madonna usasse lingerie no palco enquanto cantava sobre sentir prazer com homens e mulheres.

Hoje, vemos muitas artistas sendo sexualizadas para a satisfação de uma indústria musical majoritariamente masculina, porém vemos outras que controlam suas narrativas, como Lady Gaga, Beyoncé e Rihanna.

Do pop ao punk

The Clash foi um dos pioneiros do punk, estilo marcado pelas músicas com contestações sociais
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The Clash foi um dos pioneiros do punk, estilo marcado pelas músicas com contestações sociais

Antes de Madonna revolucionar a música pop, porém, outro movimento musical ganhava força na Inglaterra. Nos anos 1970, comandado por Sex Pistols e Tha Clash, o punk dava as caras com um estilo de rock rápido e foco em letras políticas. Um dos discos dos Pistols, por exemplo, chamava-se “Anarchy in The U.K”. O Clash cantava sobre a Guerra do Vietnã e a soberania capitalista americana, ao mesmo tempo em que criticava a intolerância britânica com imigrantes.

Mais do que uma atitude, o punk era um movimento de questionamento político, bem como foi o Maio de 68. Questionadores e não-conformistas, eles encontraram nas músicas simples, as vezes sem nem mesmo ter total domínio de seus instrumentos, a ferramenta para fazer sua própria revolução. Além deles os Ramones, antes de se tornar item obrigatório no guarda-roupa de digital influencers, também usavam suas letras para criticar o establishment.

O legado de maio de 68 nos dias de hoje

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"Moonlight" conquistou prêmio máximo da Academia, com história de viés social e humanista

Se olharmos para a música nacional não acharemos muitos exemplos atuais que ainda representem Maio de 68. Pelo menos não no mainstream. Temos, claro, os criadores da Tropicália citados anteriormente. Mas a onda do momento, que vai do pop a música sertaneja, não almeja a crítica social.

O mesmo, porém, não pode ser dito em outras áreas. O audiovisual tem buscado analisar o presente e o passado, com José Padilha servindo como bom exemplo de comentarista social, seja em seu documentário “Ônibus 174”, seja em “Tropa de Elite” ou mais recentemente em “O Mecanismo”. Sem entrar nos méritos do que é bom ou ruim, certo ou errado em sua obra, é fato que o diretor procura expor nossas falhas, mas também nos compreender como sociedade.

No mundo, o cinema considerado humanista também ganhou e segue ganhando força no mainstream, como parte dessa mudança de comportamento, que se reflete na sétima arte. A ideia de pegar um tema micro e ampliá-lo expondo suas falhas tem ganhado mais espaço, com o ápice na premiação de “Moonlight” em favor de “La la Land” no Oscar de 2017.

Embora o segundo tenha todos os méritos cinematográficos, a força do primeiro está em sua história, que reflete um grupo muito específico, porém muito marginalizado: a comunidade negra da periferia de Miami, nos EUA.  

O próximo maio de 1968

Se há influência do período até hoje, não dá para dizer que sua realização teve resultados homogêneos. Ao mesmo tempo em que notamos esse reconhecimento de histórias pouco exploradas, vemos crescer também o cinema de entretenimento, com filmes de franquias fazendo cada vez mais dinheiro.

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Há quem rejeite a ideia de que a arte se funde involuntariamente com a política, e quem prefere se manter distante da segunda (o Caso Anitta/Marielle Franco é um bom exemplo disso). Afinal, mesmo que influenciador, o movimento não foi unanime, mas foi inegável. A abrangência de Maio de 68 pode não ocorrer novamente. Mas seu legado na cultura pop é sentido até hoje.

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