É possível intuir o estado das coisas em relação ao mundo, sua percepção cultural e social, a partir da maneira como filmes sobre jornalismo são apreciados quando de seus lançamentos. Há dois anos o ótimo “Spotlight – Segredos revelados” se tornou o vencedor do Oscar com menor número de prêmios na era moderna da premiação com apenas duas estatuetas. Com a ascensão de Donald Trump, Steven Spielberg resolveu filmar – e o fez em tempo recorde – “The Post: A Guerra Secreta”, sobre a batalha travada entre a Casa Branca de Richard Nixon e o jornal The Washington Post nos tribunais a respeito da possibilidade ou não da publicação de documentos sigilosos que comprovavam que o governo americano ludibriava o povo daquele país a respeito da guerra do Vietnã.
Spielberg, é bem verdade, cercou-se de talento de primeira grandeza e predicados indevassáveis. Tom Hanks e Meryl Streep estrelam – um elenco de muita tarimba e talento apoia – e o ângulo escolhido ecoa o discurso feminista tão em voga, mas há algo de especial além disso em “The Post” . Além do ritmo de thriller – e Spielberg filma com uma urgência de tirar o fôlego -, da reconstituição de época irrepreensível e dos diálogos espertos, cortesia do roteiro de Josh Singer e Liz Hannah, o filme captura um momento especial da consolidação da democracia norte-americana e do que ela representa. Algo, no mínimo, em risco na atualidade.
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Nesse contexto, “The Post” é tanto uma defesa da liberdade de imprensa como é um elogio do bom jornalismo, de seu valor como ciência social. O filme chega em um momento que temos não só Trump no poder, mas que empresas de comunicação se veem obrigadas a reavaliar seu modelo de negócio e que desafios como o das chamadas ‘fake news’ se impõem sem resolução fácil no horizonte. Esse cenário influencia, é claro, a percepção que se tem de “The Post”, um filme que ganha mais força, substância e sentido em uma época de tantas dúvidas e angústias.
A angulação dada por Spielberg à história, uma dessas que pode ser revisitada de quando em quando por diferentes perspectivas, afere especial tino dramático ao filme. O foco está em Kay Graham, defendida com o misto de voracidade e sutileza que Meryl Streep tão bem nos acostumou. Eis uma mulher que herdou o controle do jornal que foi de seu pai após o suicídio do marido e que, na esteira da já difícil decisão de abrir o capital da empresa da família, precisa decidir se entra ou não em guerra franca com o governo dos EUA em um momento de fragilidade econômica. O dever cívico e vocacional deve prevalecer às responsabilidades como empresária para com seus funcionários, familiares e ativos?
A personagem tem uma hesitação legítima e seria legítima qualquer que fosse sua escolha. A beleza de “The Post” figura justamente no paralelo que estabelece entre a escolha de Kay e seu potencial feminista. Ela, afinal, não estava decidindo “apenas” se publicava ou não os arquivos secretos. Sua decisão encampava muito mais do que isso e mais do que ser considerada criminosa por afrontar eventuais decisões judiciais.
Também são legítimas as inquietações do editor-chefe Ben Bradlee, interpretado com a candura e elegância características de Tom Hanks . Ressentido dos vínculos cada vez mais umbilicais entre jornalistas e políticos, com uma necessária mea-culpa, Bradlee vê na saudável rivalidade com o The New York Times, que largou na frente na publicação dos documentos sigilosos sobre o Vietnã, a chance não só de elevar à grandeza do Post, como de romper com essa noção amoral de que o jornalismo deve ser subserviente ao poder.
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Sob muitos aspectos, “The Post” é o filme de super-heróis dessa temporada de premiações. Não por ofertar fantasias embrulhadas em escapismo, mas por nos lembrar que já fomos melhores e mais vocacionados.