Dez anos depois da estreia, “Tropa de Elite” continua atual
Um dos filmes mais impactantes e de maior bilheteria do Brasil, “Tropa de Elite” gerou debates morais e sociais e entrou para a história do cinema
Por Gabriela Mendonça | , iG São Paulo* |
“Tira essa roupa preta”, “pede pra sair”, “põe na conta do Papa”. Em 2007 (e um bom tempo depois) essas expressões eram ouvidas em todos os lugares. Esse foi um dos efeitos mais palpáveis após o lançamento de “Tropa de Elite” em 5 de outubro daquele ano. O filme transformou a carreira de Wagner Moura e José Padilha, abriu um debate a cerca da corrupção sistemática, abuso de poder e violência no Brasil, se tornou o filme mais assistido do ano (e o mais pirateado) e ganhou fãs fervorosos e críticos impiedosos. Dez anos depois, o longa continua sendo um dos maiores do Brasil, seja pela história, pela projeção internacional ou pelos debates gerados.
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“Tentei criar uma representação da sociedade em que vivemos”, explica José Padilha em uma breve entrevista ao iG . Ocupado com a série sobre a Lava-Jato que está produzindo para a Netflix, o diretor relembrou alguns momentos do filme e comentou sua repercussão. Oficialmente, cerca de 2 milhões de pessoas assistiram a “ Tropa de Elite ” no cinema. Mas, segundo o IBOPE, 11 milhões de pessoas assistiram ao filme de modo ilegal.
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Põe na conta do Gil
“Fenômeno” é uma boa palavra para descrever “Tropa de Elite”. Mas, é melhor ainda quando utilizada para descriminar a enorme pirataria do longa, antes mesmo de sua estreia. Dois meses antes do lançamento oficial, cópias piratas do filme começaram a ser vendidas por camelôs em todo o país. A investigação para encontrar quem fez o vazamento e tentar impedir o ocorrido acabou gerando boa publicidade para o filme. Há quem acredite, até hoje, que o vazamento foi proposital e serviu como jogada de marketing para atrair mais pessoas ao cinema. Para Padilha, o ocorrido “deu raiva”. O diretor conta sobre ocasião específica, quando foi recolher uma cópia pirata do filme na casa de Gilberto Gil , na época ministro da Cultura.
“Um policial que eu conheço estava no Circo Voador e me disse que viu Flora Gil obter uma copia pirata do filme e organizar uma exibição para amigos na casa do ministro. Me passou data e hora. Fui lá, toquei a campainha e pedi a fita de volta. Depois de insistir por algum tempo, uma funcionária do ministro abriu a porta e me deu um DVD pirata do “Tropa”. Coloquei no bolso e voltei para casa. Simples assim. Ministro para mim não é autoridade, é funcionário publico”, esclarece o diretor.
Crítica
“Me lembro que muito se comentava sobre o filme e na maioria das vezes, elogios e recomendações de que fosse assistir o quanto antes. Havia um certo entusiasmo”, reconta o psicanalista Eduardo Silva. “Umas das coisas que mais me impressionou no filme foi a sensação de realidade , que não foi falseada e nem romantizada”, completou.
O crítico Sérgio Rizzo comenta que o filme teve grande impacto no Brasil, na mídia e entre o público, por levar à tela uma trama policial envolvente, à moda dos filmes americanos , mas ambientada em um cenário realista. Para ele, o longa foi um grande exemplo de comunicação com o grande público e de abordagem a temas sociopolíticos brasileiros.
Apesar da repercussão, o filme não foi unanimidade na crítica. Alguns defensores o consideraram o “melhor filme do ano”, enquanto alguns veículos, como a Variety , chegou a chamar o filme de fascista . “Gosto quando meus filmes criam debates apaixonados”, declara Padilha. Mais do que apaixonados, os debates eram profundos. O jornalista e crítico Plínio Fraga classificou o filme como “ desumano e autoritário”. Embora reconheça os méritos técnicos, como direção e fotografia, Fraga chamou o filme de “conivente” e disse que não merecia aplausos, “nem mesmo sob tortura”.
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O Urso
Mesmo afirmando gostar dos debates acalorados, Padilha chegou a reclamar da crítica internacional na época do lançamento do filme, alegando que era “bobagem” chamar o filme de fascista. Divididos quando o filme foi exibido no festival de Berlim de 2008, os críticos viram “Tropa de Elite” levar o Urso de Ouro de Melhor Filme em um júri presidido pelo cineasta Costa-Gavras. A memória não passa batida por Padilha, que é fã de Gavras e guarda com carinho o momento em que ele anunciou “Tropa” como vencedor.
Herói?
Padilha afirmou que não tentou embutir uma mensagem específica no filme, mas acredita que seu trabalho no longa, bem como “ Ônibus 174 ” e “ Tropa de Elite 2 ”, mostram uma perspectiva sobre a violência no Rio de Janeiro. Qual é a perspectiva? “A ideia de que a forma pela qual a segurança pública esta organizada e é administrada no Rio de Janeiro gera boa parte dos problemas de segurança que vivemos”, explica.
Para ele, no Rio de Janeiro o estado é um agente gerador de violência porque as suas instituições produzem Sandros (em referência a Sandro Barbosa do Nascimento, sequestrador do ônibus 174), Fábios, Mathias e Nascimentos (personagens de “Tropa de Elite”). Para Eduardo Silva, a crítica presente no filme em relação a esse agente é feita. “Desigualdade social, polícia corrupta , policiais bem treinados mas que ultrapassam os limites para o cumprimento da missão”, Silva crê que todos esses aspectos são representados no filme.
Plínio Fraga, porém, não viu isso como uma vantagem. Em sua crítica ele ainda acrescentou: “o diretor José Padilha pode alegar que apenas retrata a realidade. Em muitas partes do filme, não está longe dela, mas esse é um argumento débil naquilo que se refere à condescendência e ao estímulo à tortura ”.
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Em meio a isso, o personagem central, Capitão Nascimento (Wagner Moura) se tornou um herói. De acordo com entrevistas de Padilha e Bráulio Mantovani , que escreveu o roteiro junto com o diretor, Nascimento não seria o protagonista inicialmente. O filme iria girar em torno de André Mathias (André Ramiro) em sua saga desde um policial idealista até um torturador. Foi na edição de Daniel Rezende que o filme tomou outros rumos. E o Capitão Nascimento se tornou, para muitos, um herói nacional.
“Vivemos um momento de crise institucional onde as pessoas buscam a figura do herói, aquele idealizado e admirado na infância, o salvador da pátria, aquele que não se corrompe. É uma atitude infantil e fantasiosa, mas atual”, comenta Silva. Por conta disso, um policial incorruptível que “faz o certo por linhas tortas” ganha fãs.
“Fico preocupado quando vejo o capitão Nascimento ser tratado como herói. (...) Talvez, aí sim uma tragédia, fascistas estejamos nos tornando nós, brasileiros, cidadãos carentes de uma política de segurança pública qualquer”, escreveu Wagner Moura em um artigo na época no lançamento do filme, em luz das críticas recebidas. Nascimento, porém, é incorruptível. E essa característica continua sendo uma raridade até hoje, ou, principalmente hoje.
10 anos depois
“ Tropa de Elite ” foi um filme pensado para chocar os espectadores, mas não só isso. Com suas cenas de violência e brutalidade, o longa retrata a ação dos policiais do BOPE nas favelas dominadas pelo tráfico no Rio de Janeiro, explanando a forma violenta com que a polícia trata as periferias, na repreensão ao tráfico de drogas. E nesse ponto, pouco, ou nada, mudou.
“A gente vive num momento de transição muito grande, onde a população vem cada vez mais se conscientizando politicamente e se colocando politicamente. Ao mesmo tempo, nunca surgiram tantas denúncias de corrupção na mídia”, comenta André Ramiro , intérprete do aspirante André Mathias no longa. “Mas, em termos de segurança pública, eu não vejo que melhorou muito”, confessa.
Ramiro despontou no longa, que foi seu primeiro trabalho como ator. “Foi importante participar desse filme. Eu me senti fazendo minha parte como cidadão porque o filme é uma denúncia a tudo o que já vinha acontecendo a muito tempo”, completou o ator.
Refletindo sobre o filme 10 anos depois, Ramiro acredita que ofereceria a mesma performance de antes, caso fizesse o filme nos dias de hoje. “Eu acho que o Mathias foi construído como deveria. Acredito que eu atuaria com o mesmo senso de justiça e o mesmo coração que ele tinha”. Ele não é o único. Padilha também fala que não mudaria nada na história, caso a escrevesse 10 anos depois. Aliás, ele também acredita que a crítica continuaria dividida. “A crítica não recebeu o filme de forma homogênea no passado, e acho que não receberia hoje”, explica.
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É possível. Mas será que hoje o filme ainda é tão relevante quanto foi na época? Parte do que tornou “Tropa de Elite” tão atraente, além do tema, é o fato de que o filme segue a risca estilo do cinema americano, bem diferente do que costumamos ver nas produções nacionais. Apoiado pelos magnatas do cinema americano , os produtores Bob e Harvey Weinstein , Padilha moldou o filme ao que agradaria o público no exterior (o que, ironicamente, não impediu a crítica americana de rejeitar o filme). O diretor costumava fazer cortes do longa e enviar para os dois, que ofereciam um feedback aplicado aqui. “Tropa” não criou uma tendência para o cinema nacional. Outros destaques dos últimos anos incluem “Que Horas Ela Volta”, “Aquarius” e até mesmo “Linha de Passe”, premiado em Cannes. Nenhum desses filmes segue a estrutura narrativa de Tropa. Ainda assim, essa característica de filme de ação, mesmo que adaptada ao cenário nacional, é rara no cinema brasileiro e faz com que ele se destaque no estilo.
Consequências
Nos últimos 10 anos, Padilha dirigiu a sequência de “Tropa de Elite” que colocou o Capitão Nascimento, agora Coronel, buscando outros meios para encontrar justiça. Além disso, ele idealizou o reboot pouco apreciado de “ Robocop ” em Hollywood e foi produtor executivo de duas temporadas de “ Narcos ”. Claramente, o sucesso de “Tropa” ofereceu projeção internacional ao diretor. Mas também o estabeleceu como o nome a se chamar quando o assunto é relacionado a sociedade brasileira. Agora, ele trabalha na série que irá falar sobre a Lava-Jato, operação ainda em andamento pela Polícia Federal. Ainda no tema, Padilha confessa que seria interessante fazer um filme sobre a ascensão do presidente americano Donald Trump.
Para Moura, o caminho foi parecido. Participação em filmes hollywoodianos, como “Elisyum”, destaque internacional como protagonista de “Narcos”, que lhe rendeu uma indicação ao Globo de Ouro, além da oportunidade de dirigir seu primeiro longa, o que deve acontecer nos próximos anos. Moura conseguiu superar a percepção de que ele era o Capitão Nascimento, e Padilha segue desenvolvendo bons projetos.
“ Tropa de Elite ” pode não ter inovado o cinema e seus méritos são mais refletidos no debate sobre como nos comportamos como sociedade do que em suas características cinematográficas propriamente ditas. Mas, é justamente esse debate e essa percepção de violência tão intensa e real que chocaram e transformaram o filme no ícone que é. Mesmo 10 anos depois.
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* Com reportagem de Karine Seimoha