"Fui censurado", diz autor de livro assinado por Eduardo Cunha como pseudônimo
O escritor Ricardo Lísias foi alvo de um processo judicial por conta de seu livro intitulado "Diário da Cadeia" assinado por Eduardo Cunha pseudônimo
A arte é sem fronteiras e, para Ricardo Lísias , ela também pode transpassar personalidades. Longe dos holofotes, o escritor utilizou as polêmicas da operação Lava Jato para escrever um livro que traria relatos sob a perspectiva do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Utilizando o nome do político como pseudônimo, sua obra “Diário da Cadeia - Com Trechos da Obra Inédita Impeachment” foi colocada à prova quando a publicação chegou a ser proibida depois do próprio Eduardo Cunha entrar com ação contra o trabalho.
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O que era para permanecer apenas nos bastidores veio à tona então. Ricardo Lísias tornou-se o nome por trás do Eduardo Cunha impresso nas capas do livro rompendo com o imaginário dos seus leitores. Defendendo o seu trabalho com a literatura performática, Lísias concedeu uma entrevista ao portal iG por telefone na qual afirmou que a proibição de sua obra teria sido uma censura e que os envolvidos na polêmica teriam menosprezado a inteligência do povo brasileiro. Confira a entrevista completa:
iG -O que é a literatura performática? E qual a contribuição dela para a literatura enquanto arte?
Ricardo Lísias - No meu caso, nesse último livro que causou controversa [“Diário da Cadeia”], eu tentei fazer uma intervenção na realidade enquanto a realidade está ocorrendo, porque ao contrário de muitas artes, como o teatro, a literatura costuma reagir diferentemente. Algumas obras têm tentado intervir no seu momento, não é uma coisa muito comum no dia a dia, mas eu tentei fazer nesse caso, nesse diário que teria sido publicado sob um pseudônimo. O fato de ter um pseudônimo fazia parte de ter uma criação, como se trata de uma sátira normalmente é assinada por pseudônimo.
Literatura performática é intervenção na realidade contemporânea, é algo que faz com a obra ela salta desse mundo, ela vai parar em outras instâncias da realidade. Às vezes as artes plásticas faz isso, é outra cultura que a gente acaba tendo. O teatro também é muito assim. No caso da literatura ela acaba intervindo na realidade ao redor de uma maneira mais sensitiva. Houve uns anos que eles reparam a divulgação do meu nome. Embora o Supremo tenha considerado que o que eu fiz não é ilegal, não tinha que ter acontecido isso.
iG - Muitas das obras que são atribuídas a você como autor, na realidade são pseudônimas. Como é a sua relação com esses pseudônimos? E por que usar?
RL - A literatura satírica usa esse pseudônimo. A novidade que eu criei foi assinar o livro com o nome de umas das personagens, mas eu avisei na capa. Eu procurei no dicionário o que significa pseudônimo e significa que o nome que tá ali não tem correlato na realidade. Não é o nome de quem escreveu. Eu passei a utilizar por isso mesmo, como é uma sátira política e todas as sátiras usam o recurso do pseudônimo, eu usei também. Tá avisado na capa.
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iG -O caso do livro “Diário da Cadeia” gerou muita polêmica ultimamente até envolvendo a Justiça na situação. Como você encara isso? Você acredita que isso possa ser considerado uma censura ao seu trabalho? Por que?
RL - Não tenho a menor dúvida, houve uma forma de censura em primeira instância ao que foi só um procedimento artístico do pseudônimo. O que aconteceu é que a juíza foi manipulada e não tinha como saber que se tratava de uma obra de ficção porque os advogados não avisaram e ela teve uma decisão muito rápida com liminar. Todas as decisões foram tomadas sem considerar que é uma obra artística. Quer impedir o artista de tomar alguma decisão sobre a sua obra. Foi censura mesmo. Há uma tentativa de censura. Houve uma intervenção da minha obra que foi a criação do meu pseudônimo. Mesmo que a gente declare agora que eu tenho razão, não tem mais o que fazer. Estão destruindo minha obra, uma parte foi destruída.
iG - Qual foi a sua motivação para criar esse trabalho? Como se deu essa construção de realidade e ficção na obra?
RL - Eu comecei a prestar atenção na operação lava jato e eu decidi que eu iria fazer vários trabalhos sobre a operação. Comecei a escrever um diário e eu escrevia no mesmo dia que aconteciam os fatos. Se era no dia 20 de novembro eu escrevia sobre aquilo no final da noite. Tem uma coisa de “working in progress”. É uma coisa difícil porque você escreve sobre a realidade enquanto ela está acontecendo e, ao contrário do jornalismo, você não reproduz. É uma invenção então é uma dificuldade maior. Foi bem divertido apesar de tudo.
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iG - A figura do Eduardo Cunha favorece esse tipo de digressão estilística? E por que não criar um personagem inspirado no Cunha?
RL - Ele é icônico da situação toda. Ele é o centro das coisas e ele foi o escolhido, mas ele é o primeiro. Agora eu não sei se vou continuar fazendo por causa de toda essa confusão eu não sei se vale a pena, mas eu faria de outras pessoas. Uma coisa que eu acho curioso é que os políticos são artistas: Temer é poeta, Dilma eu vi que quer escrever um livro policial... eu fiquei bem interessado nisso e refletindo sobre isso.
iG - Você já afirmou em entrevistas anteriores que a literatura brasileira não tem o poder de incomodar como deveria. O que é esse poder da literatura de incômodo? E de que forma ela pode atingir essa virtude de literatura incômoda?
RL - O que acontece é que depois que vazou o meu pseudônimo um monte de gente ficou incomodada com essa história, nenhum deles por razão de estética. Uma arte que incomoda é uma arte que faça o poder se sentir ameaçado. Isso acontece na literatura em muitos lugares, inclusive no Brasil. Mas a literatura contemporânea não tem um grande espaço nessa direção.
iG - A História é uma disputa de narrativas. O momento que estamos vivendo atualmente será recontado nos livros de História do Brasil futuramente de acordo com a narrativa que se sobrepor nesta disputa. Você acredita que a literatura performática possa ser uma forma de subverter essa narrativa hegemônica por justamente mesclar a ficção com a realidade? E de que forma?
RL - Eu acho que é isso mesmo. É esse o centro da questão. É uma forma de a gente intervir para não permitir que haja discursos hegemônicos e as ações contra mim são uma tentativa de manter esses discursos hegemônicos. Eu tenho direito de dizer o que eu acho como todas as pessoas tem o direito de dizer. Por isso que estão tentando censurar. Seja lá quem for. Como o Brasil o virou A ou B, ou é coxinha ou mortadela ninguém entende que entre eles tem uma culinária inteira então todo mundo quer a sua narrativa. Pra pensamento isso é péssimo.
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iG - O cenário político atual favorece muitas situações que antes julgávamos inimagináveis esse é um terreno fértil para essa literatura performática? De que maneira?
RL - Eu acho que sim. É tão inimaginável que a gente, para compreender isso, precisa lançar mão de elementos, de formas mais enriquecedoras, mais ricas e a arte tem um pouco disso. É a arte que tem poder de revelação e as ações contra mim revelam como elas trabalham. É dito que o povo brasileiro não tem condições de entender o que significa a palavra “pseudônimo” e isso faz parecer que o povo é burro, e não é.
iG- Que outros personagens do nosso cotidiano você acredita que renderiam um bom livro como “Diário Da Cadeia”? Por que?
RL - Eu vou te dar um exemplo, eu não estava fazendo ainda, mas eu tinha feito anotações, tinha feito uma pagina de criação do Messias. O Lula estava no aeroporto e esse Messias era o detetive que eu ia fazer de um romance policial que é as aventuras do detetive Messias e quem ia assinar era a Dilma Rousseff pseudônimo. Mas agora todo mundo sabe. José Dirceu também é um personagem impressionante para isso.
Apesar de toda a polêmica, “Diário da Cadeia - Com Trechos da Obra Inédita Impeachment” assinado por Eduardo Cunha pseudônimo teve a publicação liberada pela Justiça no final de abril. O desembargador Augusto Alves Moreira Junior, relator do processo, afirmou na decisão que "trata-se de uma obra literária de ficção, a qual tem como pano de fundo a realidade política brasileira. Em uma análise preliminar, conclui-se que não houve anonimato, vedado pela Constituição Federal, e sim a utilização de um pseudônimo em uma obra ficcional". O livro é da Editora Record e já pode ser adquirido nas livrarias.