Sexo e cinema: como a sétima arte evolui o tema ao longo dos anos
De uma forma ou de outra, sexo tem sido retratado no cinema desde o surgimento da película. Mas é legítima a ponderação a respeito do quanto a sétima arte evoluiu na abordagem e retratação do sexo; confira
Em 1896 um dos primeiros filmes feitos na história, “The Kiss”, chocou a plateia durante sua exibição. Com cerca de 18 segundos, o filme mostrava um breve beijo entre May Irwin e John Rice. Marcava-se aí o início da relação sexo e cinema. O filme foi considerado pornográfico e chocante e acabou censurado. Em 1913 “Tráfico de Almas” foi o primeiro filme americano a retratar sexualidade, por meio da história de duas mulheres imigrantes que são ludibriadas por homens com a promessa de trabalho, apenas para se tornarem suas escravas sexuais.
Mas, independentemente do período, falar e mostrar sexo no cinema continua sendo um tabu. “ Sexo é ainda um grande fantasma na história do cinema. Do explícito ao implícito, ele aparece em diversas formas de representação. Liberais, transgressoras, estilizadas, conservadoras, tímidas, desfocadas, as imagens cinematográficas procuraram, desde o cinema silencioso, trazer representações sobre o desejo em seus sentidos sexuais, morais e ideológicos”, comenta Rodrigo Gerace, sociólogo e autor do livro “Cinema-explícito: representações cinematográficas do sexo” .
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Ele explica que há várias maneira de retratar sexo em uma cena, desde um beijo na boca às cenas explícitas. “O cinema procurou ao longo do tempo organizar em estéticas diferentes modos de se filmar o desejo”, complementa.
Cenas de sexo podem ser importantes para o desenvolvimento de um personagem, como a Cristina Peck de Naomi Watts em “21 gramas”. O sexo representa ao mesmo tempo uma dissociação com a sociedade, uma forma de rebeldia, como também uma tentativa desesperada de se reconectar.
O sexo também pode ser usado como narrativa para mostrar a evolução de uma personagem, como ocorre com Stéphanie ( Marion Cotillard ) em “Ferrugem e Osso”. Depois de perder a perna ela vive amargurada e ressentida, e voltar a fazer sexo mostra para a personagem que ela ainda pode sentir prazer, ainda pode se sentir empoderada.
Em outros casos o uso de sexo em filmes serve como uma ruptura cultural, ou até mesmo política. Na análise de Rodrigo, o sexo é política de ruptura moral. “Cineastas como Kubrick, John Waters, Almodóvar e Barbara Hammer trabalham o sexo no campo político de subversão ao conservadorismo”, explica.
Censura e ruptura
Para Rodrigo, a maneira como o sexo era retratado no cinema mudou ainda nos anos 1800, com a censura do primeiro filme em 1896. Depois disso, em 1934 foi criado do Código Hays, que por trinta anos definiu como o sexo deveria ser retratado, favorecendo narrativas mais conservadoras. Daí, Rodrigo comenta, o sexo passou por uma “purificação” ao se tornar “mainstream”, convencionando como padrão, por exemplo, a cena de sexo cortada para o café da manhã. “Esta elipse tão comum em qualquer filme sessão da tarde e em muitos cultmovies denota: porque não mostrar o sexo tal como ele é? Por que o cinema investe, produz e consome filmes com violência explícita e repudia cenas de sexo?”, ele questiona.
Essa convenção, porém, abriu espaço para que o cinema alternativo e independente utilizasse o sexo de maneira mais explícita, desenvolvendo rupturas morais e metáforas ideológicas.
Nessa esteira surgem filmes como “Kids”, de 1995, que quebram todas as barreiras ao retratar um dia na vida de um grupo de jovens, envolvidos em drogas, sexo, álcool e violência. Dirigido por Larry Clark, “Kids” não procura formar um julgamento sobre esses jovens, mas simplesmente transmitir ao público um retrato específico da juventude.
Em “Tatuagem”, de Hilton Lacerda, o sexo e o amor livre servem como narrativa dentro e fora das telas. As cenas explícitas se encaixam nessa ruptura explicada por Rodrigo, ao mesmo tempo que o amor dos personagens e sua relação batem de frente com o conservadorismo da época que o filme retrata: os anos de chumbo da ditadura .
Libertação sexual
Foi nos anos 1970 que esse panorama começou a mudar, com filmes como “Império dos Sentidos”, de Nagisa Oshima, que mostrava sexo explícito, ao mesmo tempo que os personagens tinham profundidade. “Aparecia então o lema ‘pornô com história’. O filme foi relevante pela discussão sexual que trouxe à época, de modo aberto, sobre virgindade, orgasmo, liberação sexual, feminismo”, explica Rodrigo.
Ele ainda destaca obras de diretores experimentalistas, como Kenneth Anger, Pasolini e a já citada Barbara Hammer, mas também exemplifica com o trabalho de diretores contemporâneos, como Lars Von Trier , Pedro Almodóvar e John Cameron Mitchell e o cinema marginal.
No Brasil, esse despertar se popularizou com o que hoje conhecemos como “Pronochanchada” . Também seguindo a tendência de liberação sexual, o Brasil tem uma rica produção desse gênero, que por uma década gerou filmes com altas bilheterias, e popularizou grandes artistas como Vera Fischer, Marília Pêra e Nuno Leal Maia.
50 tons de sexo
Alguns filmes, mesmo tanto tempo depois de seu lançamento, ainda fazem parte da narrativa de sexo no cinema. “O Último Tango em Paris”, de Bertolucci, chocou quando saiu em 1972. A maneira explícita como retratava o sexo fez com que o filme aumentasse a discussão a respeito da maneira que relações sexuais são retratadas nas telas. Ele chegou a ter cenas censuradas em vários países, e foi proibido na Itália, onde Bertolucci foi processado por obscenidade.
Hoje, mais de 40 anos após seu lançamento, o filme continua gerando polêmica por conta de uma cena de sexo anal que a atriz Maria Schneider afirma ter se sentido violada pelo colega de cena Marlon Brando e pelo diretor.
Mas, mesmo com tantos anos de distância entre “O Último Tango em Paris” e o curta “The Kiss”, mesmo com diretores como Lars Von Trier sendo premiados por seus trabalhos e “O Segredo de Brokeback Moutain” chegando ao Oscar, o debate sobre o sexo não parece ter evoluído. “Azul É a Cor Mais Quente” , um dos filmes mais comentados dos últimos anos, e premiado em Cannes, foi denunciado por uma associação católica conversadora francesa, a Promovouir. “Praia do Futuro”, estrelado por Wagner Moura, que exibe cenas de sexo homossexual, gerou muita revolta de espectadores que esperavam ver um tipo “Capitão Nascimento” , e não pouparam insultos quando o filme foi lançado. “O Brasil, ainda que seja um país pornô, vive, de modo geral, um pânico do orgasmo e dos prazeres explícitos, reiterando tabus, machismo, homofobia e transfobia, infelizmente. Mas creio na potente resistência que estamos construindo contra tais normativas”, fala Rodrigo, otimista.
Ao mesmo tempo que as pessoas debandam de uma sessão de “Praia do Futuro” porém, “50 tons de cinza” ultrapassa os US$ 500 milhões de bilheteria. “O filme revela o discurso saturado e moralista sobre o sexo na contemporaneidade. Ele está sempre em evidência, não para o debate e transgressão, mas para o julgamento e punição. Filmes assim apresentam certo tipo de “ousadia” burguesa para manutenção do status quo do que é permitido ou não ao mainstream”, polemiza Rodrigo.
O filme, com sua imensa exposição, perde a oportunidade de agregar ao debate, contentando-se em ser uma representação rasa do que pode ser uma relação sexual entre duas pessoas, com seus fetiches e tudo o mais. O sexo pode ter evoluído no cinema, mas a discussão sobre sexo ainda tem um longo caminho a percorrer.