“Fragmentado” atende demanda por “filmes sombrios”, diz M. Night Shyamalan
Cineasta diz ter feito filme sombrios antes deles virarem mania em Hollywood e credita seu retorno à boa fase à onda por filmes mais soturnos e personagens mais complexos que tomou o cinema americano de assalto
Por Reinaldo Glioche | , iG São Paulo |
Reinvenção poderia muito bem ser o sobrenome de M.Night Shyamalan, o cineasta indiano radicado nos Estados Unidos que já foi comparado a Hitchcock e Spielberg, lançou filmes por todos os estúdios e foi do céu ao inferno em Hollywood. No Brasil para divulgar seu mais recente filme, “Fragmentado” , Shyamalan deu um show de simpatia no bate-papo com jornalistas em São Paulo nesta semana e falou não só sobre as particularidades de seu (bom) filme, como deixou transparecer toda a sua cinefilia divertindo sua audiência.
“Há várias formas de contar essa história”, diz sobre “Fragmentado”, “e a Universal (estúdio responsável pela distribuição do longa) escolheu vender como esse thriller psicológico”, explica M.Night Shyamalan ao ser indagado sobre qual é o gênero do filme. Como habitual em seu cinema, o final é daqueles de causar sensação no público e ressignificar o filme por completo. “Nós temos três gêneros que protagonizam os três atos do filme e a cena final apresenta um quarto gênero”, fundamenta brilhantemente o cineasta.
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Compreensivelmente, o indiano se esquivava sempre que instigado a falar do final do filme, mas o fazia com elegância contagiante. Mas deixou a provocação, “acho que a premissa desse filme é ‘e se alguém com esse distúrbio imaginasse que poderia ter superpoderes?’”
O distúrbio a que Shyamalan se refere é um que nem mesmo é plenamente reconhecido pela comunidade psiquiátrica, mas há estudos e estudos sobre ele e foi justamente nessa pesquisa que Shyamalan se fiou para criar Kevin, que tem 23 identidades – como a terapeuta do filme se refere – dentro dele e uma 24ª está para surgir. O cineasta teve o cuidado de espalhar ao longo do filme referências dessas pesquisas que fez para fundamentar cientificamente sua produção, um cuidado que apresenta desde os primórdios, já que todos os indícios de que Bruce Willis estava morto em “O Sexto Sentido” estavam lá para vermos o tempo todo e fomos nós que não nos demos conta.
Tema fascinante
A princípio “Fragmentado” parece um suspense comum, evolui para um thriller psicológico e se descobre um horror. Há ainda o tal do quarto gênero que o cineasta confessa ter ficado receoso de ser revelado na esteira das primeiras exibições do filme no fim de 2016. “Essa boa vontade coletiva, mesmo na internet, nos maravilhou”, disse sobre o fato de todos que assistiam ao filme não darem spoiler do final.
Isso revela, em um primeiro momento, como Shyamalan está mais à vontade com seu status quo. Depois do estrondo que foi “O Sexto Sentido” todos esperavam um final surpreendente do cineasta. Sequencialmente seus filmes iam sofrendo com isso. “A Vila” (2004), por exemplo, uma excelente parábola sobre medo e paranoia, foi vendido completamente errado. Hoje, pagando por seus próprios filmes, Shyamalan conseguiu alcançar o equilíbrio necessário para fazer um filme profundamente satisfatório sem o grande twist do final, mas que se torna ainda mais satisfatório com ele - quando houver.
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Assumindo as rédeas
Não é uma equação fácil e só um diretor tão dominante da gramática cinematográfica seria capaz de dar essa volta por cima depois de rodar todos os estúdios de cinema, inclusive com filmes de encomenda (“Depois da Terra” na Sony e “O Último Mestre do Ar” na Paramount são exemplos vívidos). Shyamalan focou no básico, naquelas características que lhe valeram a fama, e reencontrou o sucesso de crítica com “A Visita” (2015), produzido por ele em parceria com Jason Blum, um dos nomes quentes na seara do gênero de horror de baixo orçamento. “Fragmentado” repete a fórmula, mas adiciona uma pitada de ambição à receita.
Em um momento de autocrítica, confessa: “É diferente quando você faz algo com seu dinheiro e quando você faz com o dinheiro dos outros”. O cineasta passou a ter que pensar mais severamente em alternativas criativas. Desde trabalhar com novos valores na direção de fotografia, montagem e trilha sonora, e mesmo em termos de ambientação. “Fragmentado”, por exemplo, é quase todo rodado em um espaço fechado, sem janelas e tem pouquíssimas locações abertas.
Cinema mais sombrio
Shyamalan acha que parte da resistência que foi sendo construída a ele diz respeito ao fato de seu cinema ostentar um aspecto sombrio quando o cinema mainstream ainda não estava preparado para isso. “Quando eu fiz ‘Corpo Fechado’ ainda não tínhamos esse conceito de gênero de super-herói”, observa. “Esses caras, David Fincher, Darren Aronofsky e Christopher Nolan estavam bem à esquerda, hoje estão no cinemão”.
Para Shyamalan, a necessidade de ter esse elemento sombrio cresceu muito nos últimos 15 anos. “Quem são nossos heróis hoje? Tony Stark? Jack Sparrow? São alcoólatras e mulherengos!”, salienta.
“’Fragmentado’ tem crianças sendo molestadas e crianças sendo comidas. Você não poderia fazer um filme como esse antes”, teoriza. Quem gosta do cinema do indiano, no entanto, vai reconhecer seus códigos. Além dos vestígios que deixa ao longo da narrativa, Shyamalan volta a discutir traumas da infância e a trabalhá-los a favor de uma catarse poderosa.
O filme é um prato cheio, ainda, para quem gosta de reverberações psicológicas. Além da discussão ensejada pelo distúrbio de Kevin, há subtextos envolvendo repressão sexual e abuso sexual. O roteiro é o primor que verificávamos naquela fase áurea do cineasta composta por “O Sexto Sentido” (1999), “Corpo Fechado” (2000), “Sinais” (2002) e “A Vila” (2004).
Ator ideal
Sobre o trabalho com James McAvoy, que está francamente memorável no filme, M. Night Shymalan rejeita qualquer responsabilidade pelo excelente resultado final. “Você joga suas ideias e espera que os atores te respondam com generosidade. Ele tinha tantas habilidades para esse papel...”, deslumbra-se o indiano.
“Eu consigo pôr nesta mão (e levanta a mão esquerda com quatro dedos eretos) quem seria capaz de interpretar esse personagem e McAvoy sempre foi a primeira opção. Como foram Mel Gibson para ‘Sinais’ e Joaquim Phoenix para ‘A Vila’”, observa. O cineasta revela que o ator já queria fazer um filme sobre esse distúrbio e que entrou no projeto de peito aberto.
Para o futuro, M. Night Shyamalan revela que já está escrevendo a sequência de “Corpo Fechado” e espera lançar em 2018. “Eu já tinha essa história comigo há muito tempo”.