
Términos Inacabados
Episódio Final 48 – Transcrição da Carta Inédita de Machado de Assis 2
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Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1907
Querida C.
Recebi tua resposta. Quão forte foi o impacto, meu peito tremeu, nenhum abalo nos arredores importava mais. O mundo acabava enquanto eu balançava tua carta para ver se conseguia algum rearranjo de sentido. Não conseguia crer, mas não por mim. Não.
Era por ti.
Não pude esconder-me de uma única gota da lágrima, singular mesmo, que me acometeu, sei apenas que ela fixou morada intrusa nos olhos, sem que pudesse escapar de mim mesmo. Como Camões vaticinou "não posso ficar comigo, nem sair de mim".
O que posso ainda dizer? Ainda deve me restar quanto de vida? Um ano?* O que ainda preciso escrever? Quando gastei meu último frasco de nanquim negro sob a torturada pena não foi para me desculpar -- e aqui rogo -- que este não seja nosso último encontro. Não, pelos Céus. Não pode ser. Durante o nosso penúltimo encontro na minha sala de livros, que você, gentil e genialmente chamou de fileira interminável de coleção de palavras justapostas, foi a própria perplexidade que me visitou.
Nunca poderia imaginar a intensidade com que nos completávamos com nossas assimetrias, nem como nossos pontos de vista sobre as idiossincrasias tivessem tal encaixe. Como tu bem sabes a tradução da palavra hebraica "kadosh" (קָדוֹשׁ) é "santo" ou "sagrado", mas carrega o sentido de único, raro e irrepetível. É isso, é que promove a atmosfera da atração, essa assimetria de raros que se encontram por acaso, que seja por obra do insondável destino. (Como tu sabes , cá no fundo sou daqueles que recusa o que não se pode sondar)
Você sabia, agora finalmente percebo, que a tal oposição entre o tolo e o homem de espírito não fazia mesmo sentido.
O amor, como nosso Criador, não só não pode ser compreendido, como não deve sofrer das especulações daqueles que nunca o experimentaram. Porque se trata disso: sem prová-lo, melhor reduzir-se à austeridade do silêncio. Sequer as especulações devem ser legitimadas pelo excesso de explicações. O amor é sobretudo, e, reconheço, e sei o quanto isso é ousado em nossa atmosfera positivista, uma anticiência por excelência.
A prova é que posso amar, tú bens sabe, um defeito desde que seja o teu. E, em contrapartida, você pode, e sabemos que isso aconteceu entre nós, aturar e adorar, ao mesmo tempo, várias, várias não, inúmeras das minhas viscissitudes.
Escapa de fato de todo aprisionamento com o qual a razão tenta dar direção ao inexplicável. É, valha-me, é como D-us. (não, agora não é erro tipográfico, coro só de lembrar do problema nas "Poesias Completas", destarte grafo assim mesmo)
O sentido, se é que ele ainda subsiste um átimo dele vendo o que se passa em nossos arredores, incluindo País e Instituições, é o mesmo de sempre, como Sócrates muito bem prenunciou meio milênio antes da era civil.
Não mudamos nada, somos os mesmos, e algum filósofo do futuro há de enunciar isso.
Nunca esquecerei da nossa penúltima conversa naquela que era a Jerusalém do Rio de Janeiro, já adianto -- a última nunca acontecerá -- jamais teremos nada que seja último, e sei, que com esta máxima você concordará.
'Você nunca vai parar de acumular tantos livros? Nunca vai parar de escrever?' Tu me perguntaste.
'Este poder eu não tenho.' Eu me resignei a contestar.
'E por que querido Assis?'
'Por um único motivo, oh amada! Um único. Quando se trata das outras linhas, quando se trata de literatura, assim como ocorre com a esperança, os términos são sempre inacabados.'
Seu,
Machado de .Assis.
*Premonição ou não, Machado de Assis morreria exatamente um ano depois desta carta.
FIM