"Divino Amor" usa fundamentalismo religioso para discutir espaço da mulher
Misto de ficção científica e drama existencial, longa que estreia nesta quinta (27) nos cinemas brasileiros, é novo triunfo do cineasta de "Boi Neon"
Por Reinaldo Glioche |
O desafio do cineasta pernambucano Gabriel Mascaro não era fácil depois do fascinante “Boi Neon” (2015), mas “Divino Amor”, um misto de ficção científica com drama existencial, é um alento para aqueles que nutrem grandes expectativas pelo cinema brasileiro, em geral, e do recifense, em particular.
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Assim como no longa anterior, a questão do gênero é premente em “Divino Amor” , mas a crítica ao fundamentalismo religioso ganha o protagonismo.
A narrativa se notabiliza por certo anacronismo deliberado por parte da realização. O narrador nos conta do Brasil de 2027, em que há raves cristãs e Drive-Thrus da oração. É como se fosse uma mensagem perdida para o passado ou um futuro distante. É um exercício de imaginação realmente intrigante.
Intrigante é a palavra-chave aqui. Das luzes neon à trilha sonora estilizada, que se comunicam tanto com "La La Land" como com o cinema de Nicolas Winding Refn, tudo remete a um conceito de Brasil que não parece tão distante assim. Da arquitetura clean à digitalização das assinaturas, o longa favorece uma simplificação perigosa, porém, elogiosa. Uma versão brasileira de “Black Mirror”.
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Em um mundo em que o conservadorismo religioso ganha propulsão, “Divino Amor” soa delirantemente real – e no contexto político-social brasileiro talvez alarmante. Mas Mascaro não é dado a metaforizações óbvias. O corpo, assim como em “Boi Neon” , é um elemento valioso e o naturalismo da mise-en-scène fica entre o radical e o sensual.
É justamente nesse escopo que ganha forma outro tema caro ao realizador. A percepção da mulher em nosso contexto social e, nesse sentido, “Divino Amor” representa um avanço em relação às ideias articuladas no filme anterior.
Joana, defendida com garra e devoção por Dira Paes , é uma oficial de cartório que reluta em dar andamento a divórcios na expectativa de ser recompensada por Deus. Assim como na famosa passagem de Ana na Bíblia, ela quer um filho, mas seu marido Danilo, o também ótimo Julio Machado, tem problemas no sêmen. Ambos frequentam uma seita, a Divino Amor do título, e é interessante a maneira como Gabriel Mascaro encontra para dar vazão ao celebre aforismo de Woody Allen de que todo conservador é um liberal enrustido.
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“Divino Amor” é um grande filme. Cheio de poderosas reminiscências, tecnicamente estimulante e adensado por um cineasta cheio de coisas interessantes a dizer e que sabe formata-las em filmes perenes e incomuns.