No dicionário, a palavra 'extraordinária' é usada para se referir a algo que não se enquadra aos padrões gerais; que é raro; singular ou esquisito. No mundo pop, Madonna incorporou todos os sentidos da palavra.
Nesta terça-feira (16), Madonna celebra mais um aniversário e completa 64 anos. A artista, que entrou para a indústria musical no início da década de 80, já conta com mais de 40 anos de carreira em 2022. Como explicar o fenômeno que é Madonna Louise Veronica Ciccone?
A ascensão de Madonna se deu em um período em que condutas conservadoras ainda ditavam regras nos Estados Unidos. Considerando o 'American Dream', o ideal norte-americano que tinha como padrão brancos, héteros e que mulheres não eram permitidas a expressar a sexualidade, a artista se tornou referência de combate do molde excludente.
Na década de 80, dominava nas ruas do Harlem, em Nova York, bailes frequentados por pessoas latinas, negras e LGBTQIA+. A periferia da cidade servia como abrigo para essa parte da população marginalizada.
A cultura do 'Ballroom'
Em 1977, aconteceu um marco na história dos bailes que daria início a uma tradição que vive até hoje. A drag queen Crystal LaBeija promoveu um enorme evento organizado pela 'House of LaBeija'. Nesse momento, se popularizou o sistema 'de casas'.
Inspiradas nas grifes mais bombadas da época, como House of Chanel e House of Dior, famílias de pessoas LGBTs passaram a adotar um sobrenome e se identificar como pertencentes a uma casa.
Essas pessoas se uniam devido ao preconceito social da população em aceitar gays, lésbicas e transexuais no cotidiano. Sendo assim, esse público era hostilizado e não conseguia meios de inclusão social no mercado de trabalho e nos centros acadêmicos. Sobrava, então, a união e a tentativa de conseguir se divertir apesar da negligência social. Os bailes significavam uma reafirmação da cultura LGBTQIAP+, negra e latina.
'Pose'
A série americana 'Pose' ilustra dignamente o movimento dos 'Ballrooms'. Na trama, os telespectadores são levados a acompanhar a trajetória de Blanca, Angel, Elektra e Pray Tell. Os principais personagens, negros e LGBTS, se unem no sistema de casas, após serem excluídos da sociedade.
Os 'Ballrooms' têm como principal característica a competição entre as casas. As categorias são diversas. Nas festas, integrantes desfilam segundo o tema escolhido e vence quem mais surpreender e encarnar o personagem proposto. E, é claro, Madonna é uma das principais referências.
A avalanche 'Madonna'
Em 1990, Madonna lançava a música 'Vogue', um divisor de águas que a colocaria como uma das maiores artistas femininas de uma geração. Em 'Vogue', Madonna se inspira na cultura dos bailes e competições. Surge aí o 'voguing', a dança que se imortalizou nas pistas dos 'Ballrooms'.
Além da melodia marcante, 'Vogue' traz um conceito e coreografia diferenciados. O próprio nome já faz referência à revista de moda de grande apelo mundial. 'Vogue' é a licença poética para qualquer um ser capa de revista e se sentir como o modelo mais requisitado da indústria.
O clipe leva a coreografia de Willi Ninja, da House of Ninja, que na época, já era um ícone dos bailes. Com Madonna levando ao mundo a cultura periférica dos 'Ballrooms', logo o modelo do evento foi popularizado em outras cidades dos Estados Unidos.
Com a popularização, brancos LGBTS passaram a participar dos grandes eventos. O 'Ballroom' também se tornou o principal palco para artistas drag queen.
A bandeira LGBTQIA+
Num período em que ser LGBTQIA+ era visto como próximo da aberração, Madonna foi uma das primeiras artistas a abraçar o público marginalizado. A inclusão ia para além das músicas: a artista tinha um staff que contava com a maioria pertencente ao grupo social.
Com gays e negros se apresentando ao lado da principal artista da década, Madonna passou a ser vista como uma grande aliada na luta contra o preconceito. A representatividade da cantora atravessava, primeiramente, os Estados Unidos, e, depois, o mundo inteiro.
Também por isso, a artista tem muitos fãs LGBTQIA+, principalmente homossexuais. Muito da ligação de Madonna com esse público se deve pela atenção que a artista dava à causa.
Em uma das canções mais celebres da diva, em 'In this Life', Madonna dedica uma homenagem a dois amigos que faleceram decorrente do vírus da imunodeficiência humana, o HIV, que na década de 80 matou milhares de pessoas. A crise do HIV marcou a história da saúde mundial e ressaltou a negligência de diversos governos contra minorias, reforçando a homofobia e a transfobia.
Na canção, Madonna emociona ao cantar o verso "Dirigindo na avenida/
Pensando em um homem que eu conhecia/ Ele era como um pai para mim/ Não havia nada no mundo que ele não faria/ Me ensinou a me respeitar/ Disse que somos todos feitos de carne e sangue/ Por que ele deveria ser tratado diferentemente?/ Não deveria importar quem você escolhe amar".
Anda no fim da década de 80, Madonna lançou o disco "Like A Prayer", marco pop dos anos 80. Nele, a cantora divulgou informações sobre a AIDS e explicou como pessoas portadoras do HIV, independentemente da orientação sexual, precisavam do apoio da sociedade. Na época, em 1989, as pessoas não debatiam a sexualidade em casa, no trabalho ou nas escolas, o que reforçava a ignorância de taxar o HIV como "câncer gay".
Sexualidade
Em 1990, Madonna lançava o quinto álbum de estúdio. De nome polêmico, "Erotica" se tornou um dos trabalhos mais conceituais da cantora e marcou uma fase em que a sexualidade foi o principal tema das obras da artista.
Indo na contramão do que a sociedade esperava de uma mulher branca e rica, em "Erotica" Madonna eterniza uma comunicação com a própria sexualidade.
Visando sexo e romance, a cantora transita pelos temas de sadomasoquismo, sexo oral e masturbação e também chama atenção para uso de preservativo, em meio uma pandemia de HIV. Com o trabalho, Madonna se tornou um símbolo vivo da liberdade sexual feminina.
O álbum "Erotica" foi lançado com um livro fotográfico que marcou a carreira da diva. Em "Sex", a artista pop estampa várias páginas em que aparece nua com adornos sensuais, onde a sexualidade é extremamente exaltada. Como todo trabalho revolucionário, criticos apontaram que Madonna foi longe demais e que a carreira da artista estaria entrando em decadência devido ao lançamento.
Apesar de ter sido extremamente censurado na época, a Slant Magazine o nomeou um dos melhores discos da década de 90, considerado um dos mais revolucionários de todos os tempos pelo Hall da Fama do Rock and Roll.
Herança
Nada mais ilustrativo do que o tempo para entender a relevância de um artista. Assim como as obras de Picasso, que romperam com um padrão estético dominante, as obras realizadas por Madonna a deixam em um lugar bem notório na história do pop e da geração dos anos 80 e 90.
Da época do lançamento de 'Vogue' para os dias atuais muitas coisas mudaram, outras nem tanto, e são nas que pouco modificaram que percebemos a grandiosidade de trabalhos a frente do tempo.
Atualmente, a cultura dos bailes permanecem nos centros culturais ao redor do mundo. A palavra 'Vogue' se transformou em uma das principais referências dos 'Ballrooms'.
No Brasil, o mesmo grupo que se refugiou nos bares do Harlem perpetuam a herança do Vogue e das competições. Negros, LGBTQIAP+ e artistas drag queen dão continuidade ao movimento.
Makayla Sabino é dançarina, coreógrafa e está inserida nos eventos de 'Ballroom' no Brasil. Ela entrou para o movimento no final de 2016 ao ver um vídeo no YouTube e ficar fascinada com as performances.
"Comecei a correr atrás da galera aqui do Rio de Janeiro e conheci o Diego Cazul que é um pioneiro daqui e é meu 'father'. Ele que me introduziu nessa cena e a partir daí comecei a conhecer e estudar cada vez mais", relembra.
No Brasil, o evento BH Vogue Fever reúne jovens dançarinos para um verdadeiro 'Ballroom' marcado pelas competições. "A Madonna foi um grande marco dentro dessa cultura, foi uma pessoa que abraçou a técnica da dança e levou isso um pouco mais ao mundo e as pessoas puderam saber um pouco mais sobre o que é o Vogue", analisa.
Makayla, como mulher trans, reflete a representatividade que o 'Ballroom', nascido nas ruas do Harlem como refúgio para grupos marginalizados, segue tendo em uma reafirmação cultural.
"A cultura Ballroom fala do povo negro e as pessoas LGBTQIAP+. E em primeiro lugar a cultura Ballroom ou Vogue fala sobre pessoas trans, então, fala sobre mim. Eu sou a cultura Ballroom, eu sou Vogue. Isso é o que me motiva a continuar [no movimento] ver pessoas sendo salvas", aponta.
"A Madonna foi a primeira artista a abraçar a cultura LGBTQIAP+ de uma forma Global, de uma forma que essas pessoas tivessem seu valor exaltado, vendo que suas vidas são importantes", finaliza.