Eleições 2022: artistas podem se manifestar politicamente?
Após polêmica do Lollapalooza, especialistas explicam direitos e restrições de manifestações artísticas em ano eleitoral
No segundo dia do festival Lollapalooza, o Brasil foi surpreendido pela ação do Tribunal Superior Eleitoral em proibir manifestações políticas durante o evento. O pedido foi feito pelo Partido Liberal (PL), o mesmo do presidente Jair Bolsonaro, e aceito pelo ministro Raul Araújo. O descumprimento da medida traria uma multa de R$ 50 mil por cada artista que desobedecesse.
A atitude foi tomada após as manifestações durante o primeiro dia de festival. Na ocasião, a cantora Pabllo Vittar exibiu uma bandeira estampando o rosto do ex-presidente e candidato à eleição Luiz Inácio Lula da Silva. Além disso, diversos artistas entoaram gritos de protestos contra o atual governo durante o dia.
A justificativa da proibição é de que as expressões de protestos durante o evento teriam configurado propaganda eleitoral antecipada e negativa, já que as eleições presidenciais estão previstas para outubro deste ano.
Com a liminar valendo, a intenção do partido de Bolsonaro caiu por terra. Ao tentar silenciar as manifestações, artistas se inflamaram ainda mais para utilizar a voz e palco para criticar o governo.
As manifestações
a @pabllovittar correndo com a bandeira do @LulaOficial é o que a gente precisava pra encerrar c chave de ouro esse GRANDE DIA pic.twitter.com/74oj0ZK2P6
— larré (@larrehenrique) March 25, 2022
No primeiro dia de festival, Pabllo Vittar ao caminhar pela área do público avistou um fã segurando uma bandeira do ex-presidente Lula. Concordando com a atitude do fã, a artista tomou o tecido e passou a balançar o adereço por todos os lugares. Eu tô impactada com a Marina soltando um “FUCK PUTIN, FUCK BOLSONARO” no #LollaBR
e o público seguindo com “Ei, Bolsonaro, vai tomar no c*!” 🗣 pic.twitter.com/nqt2xC2vQM
Ainda na sexta-feira, a cantora britânica Marina gritou em cima do palco os dizeres: “FUCK PUTIN, FUCK BOLSONARO” ( F*da-se Putin, F*da-se Bolsonaro).
No domingo, após o TSE aprovar o pedido de proibição do PL, os artistas, que já estavam se manifestando, levaram a provocação ao nível mais alto. E a banda Fresno abriu os trabalhos contra a censura do TSE #ForaBolsonaro
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Durante o dia, além das críticas no microfone, a banda de rock Fresno projetou no telão do palco a frase ‘Fora Bolsonaro’. O rapper Emicida, que sempre se posicionou contra o governo, também participou dos protestos. EI BOLSONARO VAI TOMAR NO CU pic.twitter.com/eSQkEyFwxV
“eu odeio o bolsonaro, quem gosta problema é seu” eu de djonga ai lkkkkkk pic.twitter.com/yPefo2dJiv
O rapper Djonga, conhecido pelas ácidas críticas ao sistema político, durante a apresentação, gritou "Eu odeio o Bolsonaro. Não pode falar né? Bolsonaro vai tomar no c*". Em referência ao ano de 2022, o artista gritou 22 vezes a frase "Bolsonaro vai tomar no c*". ANITTA DISSE QUE FAZ O PIX DE QUEM SE MANIFESTAR NO LOLLAPALOOZA E TIVER QUE PAGAR MULTA
E VAMOS DE EI BOLSONARO VAI TOMAR NO CU pic.twitter.com/c4oimRSKk2
50 mil? Poxa... menos uma bolsa. FORA BOLSONAROOOOO. Essa lei vale fora do país? Pq meus festivais são só internacionais. 🤷🏽♀️
Ciente da multa que artistas poderiam levar, a diva pop brasileira Anitta se colocou à disposição para pagar o valor para aqueles que fossem autuados pelo ‘crime’. Além disso, no Twitter, a cantora debochou do valor estipulado. “50 mil? Poxa... menos uma bolsa. FORA BOLSONAROOOOO. Essa lei vale fora do país? Porque meus festivais são só internacionais”, zombou.
Mas afinal, o artista pode se manifestar?
Para compreender a situação que envolveu a decisão do TSE e as manifestações dos artistas, o iG Gente conversou com dois especialistas da área e um coletivo de defesa da liberdade dos artistas.
Para o cientista social Fábio Luporini, a arte tem diversas funções sendo algumas delas a função de entreter, de satirizar, criticar e ironizar. Caberá ao artista decidir em qual intenção pretende enquadrar o próprio trabalho. Segundo ele, a manifestação política não é um dever do artista.
“É preciso respeitar aqueles que usam a própria arte para se manifestar politicamente e aqueles que desejam não fazê-lo. A arte não precisa se manifestar politicamente. A gente pode entendê-la pela função do entretenimento.”
O coletivo 342 Artes, um projeto de artistas brasileiros que combatem a censura às manifestações políticas e culturais, enxerga por outro ângulo. Para a coordenadora do coletivo, Mari Stockler, a não manifestação pode acabar virando contra o artista futuramente e ainda defende que em tempos em que a arte é ameaçada artistas devem defendê-la.
“Em tempos de restrição de direitos e de liberdades como a que estamos vivendo hoje no Brasil, o artista deveria, primeiro, defender a liberdade de se expressar e de fazer sua arte. Isso não quer dizer que bons artistas que não se posicionam sejam maus artistas. Mas a história não perdoará, no futuro, a neutralidade no presente. E artistas que estão em silêncio hoje poderão sofrer críticas no futuro”, aponta.
Segundo o argumento do partido de Bolsonaro, as manifestações no festival Lollapalooza se enquadram como campanha eleitoral antecipada. No Brasil, em ano eleitoral, algumas situações são proibidas por lei, como, por exemplo, o "showmício".
Para o mestre em Direito e diretor executivo da ABONG (Organizações em Defesa dos Direitos e Bens Comuns), Henrique Botelho, é preciso ter cuidado ao analisar situações que envolvem protestos de artistas. Para ele, o ocorrido no Lollapalooza se enquadra como um direito de liberdade de expressão individual.
“Considerando que artistas são cidadãos, eles têm o pleno direito no regime democrático brasileiro de manifestar o pensamento, expressão e opinião. Então qualquer manifestação de desabono, de crítica aos governantes se enquadra no exercício normal da liberdade de expressão e opinião”, explica.
No entanto, a relação comercial entre candidatos e artistas é de fato proibida pela lei. “É evidente que num processo eleitoral existem algumas restrições para assegurar a legitimidade das eleições, para evitar, por exemplo, abuso de poder econômico, como compra de votos. Nesse sentido, a legislação eleitoral foi mudando ao longo dos anos e hoje já não se tolera aquele estilo de showmício que antigamente tinha”, continua.
“No passado, por exemplo, candidatos e partidos pagavam artistas para fazerem shows, pedir voto e 'vestir a camisa'. Então, existe ali uma relação econômica e comercial.”
Para o advogado, a decisão do TSE foi um erro de interpretação e promoveu a censura do direito de liberdade individual dos artistas. “As manifestações não podem ser entendidas como propaganda eleitoral antecipada, então a decisão do TSE parece bastante precipitada e equivocada nesse sentido, porque põem à frente de um direito constitucional”, apontou.
A coordenadora do Coletivo 342 concorda com a posição do advogado e define a decisão do TSE como um ‘completo absurdo’. “Não foi uma manifestação da organização do evento e sim o exercício do direito constitucional de cada um se manifestar. Ou seja, uma artista exercendo seu direito de se manifestar livremente, um direito garantido por nossa Constituição. Isso é liberdade de expressão, algo que a extrema direita só reconhece quando se trata de defender a sua liberdade de expressão”, critica.
Na segunda-feira (27), após o encerramento do festival Lollapalooza, o partido de Bolsonaro pediu para arquivar a própria liminar. Sendo assim, a decisão do TSE foi derrubada pelo Partido Liberal.