Da nudez ao sexo, pode a pornografia ser considerada uma manifestação artística?
Diversas manifestações artísticas sempre representaram o sexo, mas quando o debate chega à pornografia, as questões a se considerar podem ser outras
A representação do sexo na arte acompanha a história da humanidade. Desde as pinturas às esculturas e até mesmo no cinema o ser humano transformou as suas relações mais íntimas em arte. Apesar de o erotismo envolver as mais diversas manifestações artísticas, muito se questiona sobre a pornografia. Os filmes pornôs têm como objetivo reascender o prazer do telespectador e são encarados como parte da indústria de entretenimento. Mas é possível afirmar que o pornô, assim como o erotismo, também é arte?
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“O que é erótico e o que é pornográfico depende na verdade do olhar, de quem vê e da intenção”, reflete Mayara Medeiros, sócio-executiva da LuzVermelha.tv, produtora de filmes pornográficos. “A pornografia vem de uns escritos das prostitutas e sempre foi um movimento de contestação da moralidade. Já o erotismo acho que está um pouco mais ligado com aquilo que já é um consenso social de o que pode ser exibido porque não fere ninguém de certa forma”, completou a produtora.
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Para a profissional, nem todo o pornô pode ser considerado uma arte, apesar de que existam trabalhos que se enquadram na categoria. “Artífice é aquilo que a gente faz reproduzindo em séries e com uma promessa já de venda, arte não é isso. Arte é aquilo que tenta pelo menos te provocar uma catarse, que faz você olhar as coisas de uma forma que você não tinha visto antes, que traz questionamentos. Então não acho que toda pornografia pode ser arte, mas eu também não acho que pornografia não possa ser”, revela. “Acredito que as duas coisas coexistem. Eu posso fazer um conteúdo completamente vazio de questionamento, que pode realmente ser categorizado como artificio, ou fazer outro como algo extremamente questionador e aí entra o debate sobre a nossa censura e o nosso problema com o corpo e com o sexo que tira esse direito que ele tem de ser arte”, completa. “Mas não tem problema nenhum no conteúdo ser vazio. Porque sempre que você vai fazer uma manifestação artística seja ela com valor de questionamento ou não, você vai retratar um momento social, isso vai virar história”, reflete.
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Já para Carla Vitória, integrante da Sempre Viva Organização Feminista (SOF), os filmes pornô possuem uma outra particularidade em relação ao erotismo que descartam a sua possibilidade de ser encarada como arte. “O diferencial da pornografia não é que ela envolve o sexo só, mas é o lugar que ela retrata a mulher. Ela coloca que a mulher é um objeto, é um pedaço de carne que está à disposição da sexualidade masculina. A pornografia considera que sexo é aquela coisa pronta, que tem nos filmes”, reflete. “A prostituição, a pornografia e o tráfico de mulheres eles são um tripé que acabam sustentando o controle da sexualidade das mulheres porque a visão que organiza essas instituições é a visão de que sexo é uma mercadoria”, critica Carla. Para ela a pornografia simplifica a relação de afeto entre seres humanos por uma relação de mercadoria, em que o principal produto é os corpos das mulheres. “É importante a gente pensar que a nossa sexualidade está organizada para o mercado. Não é o fato de ser uma arte que seja erótica em si que implica o ódio às mulheres, mas do jeito que ela é organizada”, reflete.
Violência na tela
A violência do universo pornográfico, por sua vez, é uma situação que é preocupante não só para quem faz filmes pornográficos como também para quem assiste. “A pornografia é uma ferramenta de não educação. Ela influencia na sexualidade das meninas e dos meninos e acho que toda essa sexualidade patriarcal da nossa sociedade, da qual a pornografia é uma expressão, tem essa visão de que os homens têm uma sexualidade incontrolável, que precisam estar sempre dispostos para o sexo e as mulheres não tem sexualidade, toda a sua sexualidade que tem para ser experimentada é a serviço dos homens”, afirmou Carla.
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Já Mayara Medeiros afirma reconhecer essa problemática e buscar mudar o cenário com suas produções. “Trabalho com isso porque aqui é um lugar que eu consigo ver algo em que eu possa colocar em prática melhorias. É um ambiente com muita deficiência, com muita falha e tem muita coisa para ser feita”, revelou. “Eu acho que é uma questão de você ter mulher na equipe, e isso é para qualquer minoria. Você tem que colocar a pessoa de lá com voz de poder para elas falarem, ‘olha isso aqui é violento comigo, isso é violento com todas as mulheres que eu conheço’. Acho que começa por aí, depois as coisas vão fluir naturalmente eu acho”, completou a produtora.
O pornô na sociedade
Apesar das diferentes maneiras de se entender a pornografia, o tabu que está ligado ao sexo interfere que se construa um debate acerca do tema. “A pornografia tem a dimensão de entretenimento. Eu entendo que todo mundo tem o direito a ter tempo para si. Acho que é um conceito que a gente vai perdendo em uma sociedade capitalista que fala produzir o tempo todo, sendo que todo mundo tem um direito para dedicar à si próprio”, reflete Mayara. “Acho também que é importante sempre frisar que como qualquer coisa e não só do entretenimento nenhum mercado gosta de viciados. A pornografia também não gosta de viciados em pornografia. Porque denigre o produto. É entretenimento, para você usar de vez em quando, quando você acha que precisa relaxar, para se divertir e pra ser saudável, se não for saudável realmente tá na hora de parar”, completa a produtora.
Para Carla, apesar da pornografia ter conquistado um certo espaço em que está sendo bastante consumida, ainda pouco se cria um debate em torno da questão. “Ela está num lugar que cada vez mais é consumida na sociedade e ao mesmo tempo ninguém fala sobre isso. Então fica ali num lugar entre o público e o privado. A discussão sobre a sexualidade fica isolada e a gente precisa falar sobre isso mais do que nunca. Precisa falar o que ela significa no nosso sistema, o que é a vida das mulheres que estão nessa situação...”, reflete. “Fica naquele lugar que a maior parte dos homens assistem, mas que ninguém fala a respeito. Nós precisamos falar a respeito e tentar buscar outras alternativas, porque muito tempo na humanidade a arte erótica foi produzida, mas em outros termos e para outras finalidades”, completa.