O intertexto com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, do escritor José Saramago é mais do que bem vindo para a peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” - mas engana-se quem espera topar com um texto robusto e denso como o do escritor português. Pelo contrário, a encenação, apesar de forte e com críticas sociais agudas que levam a platéia a refletir, acerta ao dar leveza às falas da atriz Renata Carvalho mesclando o texto com momentos de descontração e improviso que cativam e capturam o público de volta para dentro da cena.

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''O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu'' explora as lições bíblicas de empatia e interação entre as pessoas
Divulgação/Ligia Jardim
''O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu'' explora as lições bíblicas de empatia e interação entre as pessoas


Jesus é cada um de nós

Assim que “ O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu ” começa já é possível notar seu formato dialógico com quem assiste. Quando as luzes do teatro se apagaram, a atriz Renata Carvalho já levantou do meio dos assentos dando início ao seu monólgo - com detalhe para a lata de Guaraná Jesus que segurava enquanto dirigia-se ao palco. Inicialmente, as menções religiosas e à bíblia são sutis. Apesar da auto-referência ao falar, demoram cerca de quinze minutos do espetáculo para que seja dito em alto em bom som que a atriz é Jesus. Contando sobre grupos historicamente oprimidos - mulheres, prostitutas, homossexuais, transsexuais - Renata exclama “eu, Jesus de Nazaré, sempre fui uma delas!”.

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O que gerou revolta de grupos religiosos contra a postura da dramaturga Jo Clifford, ela própria transsexual, é, na realidade, uma interpretação limitada da intenção de seu texto. De fato, no palco uma travesti vive Jesus, mas ao mesmo tempo ela propõe a reflexão de que qualquer um poderia assumir a posição do filho de Deus. Sim, Jesus pode ser a travesti, a puta, a bicha, o drogado. Jesus pode ser você, posso ser eu, pode ser qualquer um. Quem sabe?

Quem olhará por nós?

Esse limite entre o eu e o outro, socialmente mediados, aparece em várias passagens em forma de histórias relatadas em primeira pessoa. Desde o homem invisível caído na calçada pelo qual as pessoas passam sem prestar ajuda, à filha transsexual que deixa sua casa até as violências que minorias vivem constantemente, as agressões, as ofensas. O texto exemplifica os contextos em que há barreiras para o estabelecimento dessa relação. “Esse é o preço que pagamos por ter nascido”, exclama a atriz.

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Ligia Jardim/divulgação

Cena do espetáculo

O cerne da peça é o olhar de empatia para com todas as pessoas. É fato que o foco acaba, por razões bastante transparentes, se voltando para falar de grupos marginalizado e da sua aceitação, mas o objetivo, nesse aspecto, assemelha-se muito aos textos bíblicos: amai ao próximo assim como a si mesmo.

Há vários momentos em que a identificação com as falas de Renata é universal, sobretudo em seu encerramento, quando, com toda a plateia de pé, assim como em um culto da igreja, a atriz expia os pecados das pessoas e pede que todos sejam absolvidos por eles. Para quem  conseguiu sentir a peça, o final de “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” eleva a mensagem que tentou se passar durante o monólogo com mais de uma hora. Respeito, dignidade e o perdão deveriam ser para todos, não somente para os escolhidos.

Onipresente

Teatro é uma das expressões artísticas mais antigas que existem e isso não é por acaso. Estar na plateia já é estar no teatro - você está o tempo todo dentro da peça. Nesse caso a atriz, que por sinal tem uma incrível presença de palco e conquista rapidamente a atenção, andava entre as pessoas, interagia, replicava e provocava o público. Se decorar um texto impactante como esse já exige do artista, decorar e saber fazer inserções de improviso é uma qualidade ainda mais notável e que merece destaque. Um uníssono e coletivo “amém” da plateia encerrou o espetáculo mostrando que sua fórmula funciona, cativa e envolve quem quer que seja dentro de seu universo.

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Linguagem da arte

“O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” tem gerado uma série de reações, sobretudo nos grupos religiosos e conservadores, que enxergaram como ofensa que uma travesti interpretasse Jesus. Entretanto, o perfil do público do espetáculo corrobora com a tese de que a linguagem da arte vai mais longe do que dogmas e pode tocar as pessoas. Enquanto muito se fala da repercussão negativa da montagem, como bem lembraram a atriz Renata Carvalho e a diretora Natalia Mallo após o final, não se dá o devido espaço para medir quem apoia a apresentação e o direito à liberdade de expressão. A voz dos protesto faz barulho, mas está longe de ser a única possível.

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