Começo dos Términos
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Términos Inacabados

Episódio 6 – Freud e o começo dos términos

“Em matéria de amor, deixa-se o ho-

mem de espirito embalar por estranhas

illusões. As mulheres são para ele entes

de mais elevada natureza que a sua, ou pelo

menos elle empresta-lhes as próprias idéas,

supõe-lhes um coração como o seu, ima-

gina-as capazes, como ele, de generosida-

de, nobreza e grandeza, lmagina que para

agradar-lhes é preciso ter qualidades aci-

ma do vulgar. Naturalmente tímido, exag-

gera mais ao pé dellas a sua insufficiencia;

o sentimento de que lhe falta muito, o

torna desconfiado, indeciso, atormentado.

Respeitoso até a timidez, não ousa ex-

primir o seu amor em palavras; exala-lo

por meio de uma não interrompida serie

de meigos cuidados, ternos respeitos e at-

tenções delicadas. Como nada quer à custa

de uma indignidade, não se conserva con-

tinuamente ao pé daquella que ama, não

a persegue, não a fatiga com a sua pre-

sença. Para interessa-la em suas magoas,

não toma ares sombrios e tristes; pelo con-

trario, esforça-se por ser sempre bom, af-

fetuoso e alegre junto dela. Quando se

retira da sua presença, é que mostra o que

sofre, e derrama as suas lagrimas em se-

gredo. O tolo, porém, não tem desses escrúpulos.

A intrépida opinião que elle tem de si pró-

prio, o reveste de sangue frio e segu-

rança. Satisfeito de si, nada lhe paralisa a

audácia. Mostra a todos que ama, e so-

licita com instância provas de amor. Para

fazer-se notar d'aquella que ama, impor-

tuna-a, acompanha-a nas ruas, vigia-a nas

vejas e espia-a nos espetáculos. Arma-

lhe raços grosseiros Aperta-lhe a mão

a dançar e saca-lhe o ramalhete de flores

no fim do baile. Numa noite de parti-

da, diz-lhe dez vezes ao ouvido: « Como

é bela! » porquanto revela-lhe o instinto,

que pela adulação é que se alcançam

as mulheres, bem como se as perde,

tal qual como acontece com os reis. De

resto, como nos tolos tudo é superficial

e exterior, não é o amor um acontecimen-

to que lhes mude a vida: continua como

antes a dissipa-la nos jogos, nos salões e

nos passeios.

O amor, disse alguém, é uma jornada,

cujo ponto de partida é o sentimento, e

cujo termo inevitável é a sensação. Se é isto

verdade, o que há a fazer, é embelecer

a estrada e chegar o mais tarde possi-

vel ao fim. Ora, quem melhor que o ho-

mem do espirito sabe parolar à beira do

caminho, parar e colher flores, sentar-se

às sombras frescas, recitar aventuras e pro-

curar desvios. e delongas? Um caracol de

cabellos mal arranjado, um comprimento

menos apressado que de costume, um som

de voz discordante, uma palavra mal esco-

lhida, tudo lhe é pretexto para demorar

os passos e prolongar os prazeres da viagem.

Machado de Assis

“A Queda que as Mulheres têm pelos tolos” (1861)

Continuamos por horas a discussão na cozinha:

 ‘Relaxa Jerusa, não era isso que havia entendido, eu só disse o que Freud já falou, lembra?  “As mulheres, essas desconhecidas’

‘Isso é problema do Freud”

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‘Por que toda essa tensão Jerusa, que tal relexar?’

‘Bráz, não relaxo não.  E te digo por que. Ridiculo ter que falar o óbvio, mas toda mulher tem suas próprias características. Generalizar é o hábito da estupidez, não tem nada a ver’

‘Sim, pode ser, mas veja esse  trecho aqui:

Braz retoma o livro e passa a recitar o trecho seguinte do livro que figurava nas Obras Completas, como se não fosse eu que que o tivesse apresentado a ele:

“Contento-me em repetir o que se disse antes

de mim; minhas paginas conscienciosas são um resu-

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mo de muitos e valiosos escritos. Propriamente

falando, é uma comparação cientifica.”

‘Comparação científica, que asno.’  Eu regi mal, e, em seguida suspirei.  Braz prosseguiu lendo em voz alta ignorando meu protesto simbólico.

“Desde a mais remota antigüidade, sem-

pre as mulheres tiveram a sua queda para

os tolos. Alcibiades, Sócrates e Platão foram

sacrificados por ellas aos presumidos do

tempo. Turenne, Ia Rochefoucauld, Raci-

ne e Molière, foram traidos por suas

amantes, que se entregaram a basbaques

notórios.”

‘Braz, já li e reli toda essa baboseira, e ainda não posso acreditar que o meu Machado cometeu esse deslize’

‘Meu Machado, que ridiculo Jerusa, mas concordo, ele era um outro imbecil’

‘Espera, isso ai é de fato decepcionante, mas essa babaquice não apaga toda a obra. Isso é exatamente o anacronismo non sense do politicamente correto. O cara foi um sujeito genial, não porque os criticos querem, aliás apesar dos críticos. E note, ele ridiculariza a estratégia do tolo, mas caiu na besteira de afirmar que as mulheres são presas fáceis dos cafajestes.’

‘Ok’ Braz fingiu que argumentou.

‘E você quer cancelar o cara?’

‘Ah, então só você pode cancelar Jerusa?’

Ele tinha razão, mas segui em frente.

‘A importância dele está no modo como tratou as palavras, a sensibilidade com que, apesar de tudo, capturou o feminino, você não consegue ver isso? Não consegue, eu sei’

‘Você afinal; você gosta ou não gosta? Às vezes não te entendo’

‘As vezes? ’ Eu ri. “Eu também não me entendo’

Braz limitou-se a dar um sorriso de desdém para prosseguir com sua leitura:

“O tolo é abençoado do céu pelo fato de

ser tolo, e é pelo fato de ser tolo, que lhe

vem a certeza de que qualquer carreira

que tome, há de chegar felizmente ao ter-

mo. Nunca solicita empregos, aceita-os em

virtude do direito que lhe é próprio: No-

mmor leo. Ignora o que é ser corrido ou

desderdjajio e onde quer que chegue, é fes -

tejado como um conviva que se espera.”

‘É, ele é muito bom!’ Braz exclamou.

‘Ah atá que enfim, agora você passou a gostar de Assis. Bom sinal para quem quase nunca abre um livro da minha biblioteca!’

‘Ouça isso aqui:  (Braz falou como se eu fosse uma leiga em literatura e ele o erudito bibliófilo)

“Sorri-lhe a fortuna particularmente ao

pó das mulheres. Mulher alguma resistiu

nunca a um tolo”

Foi quando ele terminou começou a rir descontroladamente e dar soquinhos triunfantes sobre a mesa.

Bem, ao suportar aquela cena anti estética, com ele debruçado sobre o livro dando aquela risada defensiva,  o vapor miasmático do chá e sua atitude me produziram um efeito, como dizer? Violento, nefasto, havia uma euforia destrutiva em mim, eu acabaria a relação naquele instante.  

Tudo que havia anteriormente admirado em sua sagacidade, em seu tirocínio, em seus olhos claros e em seu rosto de traços simétricos simplesmente se decompôs, ruiu, despareceu.

Ali, naquele instante soube internamente, terminamos.

E, mal sabia eu, seria como todos os  términos, inacabados. 

 Continua

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal iG

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