
Términos Inacabados
Julgando Machado - Episódio 5
“Este livro é curto, e talvez deveria sê-lo mais.
Desejo que ele agrade, como me sai das mãos;
mas é com pezar que me vanglorio por esta obra.
Falar do amor das mulheres pelos tolos, não
é arriscar ter por inimigas a maioria de um e
outro sexo? No século passado todas as boas
fortunas foram reservadas aos pequenos
abades. Estribados nesses illustres exem-
plos, as nossas contemporâneas continuam
a idolatrar os decendentes dos idolos das
suas avós. Não é nosso fim censurar uma tendência, que
parece invencível; o que queremos
é motiva- la. Por menos observador e menos expe-
riente que seja, qualquer pessoa reconhe-
ce que a toleima é quase sempre um pe-
nhor de triunfo. Desgraçadamente nin-
guém pôde por sua própria vontade gozar
das vantagens da toleima. A toleima é mais
do que uma superioridade ordinária: é
um dom, é uma graça, é um selo divino.
« O tolo não se faz, nasce feito. »
Machado de Assis.
“A queda que as mulheres tem pelos tolos” (1861)
Esse era o trecho que abria o famoso texto de Machado de Assis. Quando o li pela primeira vez tive uma raiva incontrolável pelo meu autor preferido. Custei a acreditar que o autor de “Dom Casmurro” e de “Memórias Póstumas” fosse capaz de colocar seu nome num texto que explicitava (e talvez justificava?) certas tendencias (ou seriam afinidades) das mulheres em relação aos homens.
Ele tinha razão quando antecipou que faria inimigos em pelo menos um sexo: eu! Simplesmente deixei de me interessar pelo autor. Se apenas soubesse o que seu hoje e que ele não era culpado. Mas na época não lia e não gostava de mais nada relativo a ele.
Como tudo é absurdo no campo das preferências individuais, não é mesmo? Nossa relação já estava desgastada pelo trabalho, pela distância afetiva, pelo desinteresse dele e pelo meu também. Não é coincidência que uma das minhas primeiras grandes brigas com o Braz foi exatamente foi nesse contexto, isto é, sobre este assunto.
Eu estava sozinha, com o livro apoiado, como texto marcado, sobre a mesa da cozinha, relendo inconformada :
Braz entrou de roupão, segundo uma xícara, e eu me virei para conversar:
'Estou relendo esse texto, já te falei sobre isso, não me conformo. Machado nos traiu".
‘Você exagera Jerusa, Machado apenas expos o que observou em algumas mulheres que se deixam seduzir por esse tipo de homem. Ele não está generalizando.’
‘Que mentira. Você já leu? É óbvio que ele generaliza. Generaliza e ridiculariza o feminino. Se as mulheres admiram os babacas, os sem noção, os boçais, os idiotas sedutores baratos é porque todo esteriótipo que se construiu sobre elas tem alguma verdade..., talvez toda a verdade’
Bráz (só depois da separação eu passei a chama-lo de Zoilo) então sentou-se à mesa com seu chá fumegante de cheiro horrível e começou a rir, de forma lenta e debochadamente.
Eu deveria ter desconfiado que ele era o babaca, o idiota, ele era o cara que Machado descreveu como o tolo clássico, se é que há de fato um tolo clássico."Toleima" ele escreveu. Mas, hoje é evidente, eu não tinha percebido. Aliás, sempre se percebe muito tempo depois com quem a gente acaba se envolvendo. E olha que eu já estava casada faz tempo.
‘Jerura amor, não leve tudo tão a sério, -- ele puxou o meu livro para perto dele – Veja só querida, Machado escreveu isso em 1861, não tem mais a menor relevância.
‘O tom didático dele me irritou. Lembrei da frase do filósofo:
“Nem sempre uma anterioridade cronológica é uma inferioridade lógica”
E Braz prosseguiu:
‘A verdade Jerusa, é que ele fez uma compilação de tudo que se pensava sobre as mulheres, as vezes eles erraram, mas as vezes'
‘Às vezes eles tinham razão Braz?
“Ah vai, admita tem muita mulher que admira este tipo de cara’
‘Qual tipo de cara?’
‘Essses desmiolados, caras que tratam mal, musculosos nascisistas, e elas gostam daqueles que não sabem como levar a coisa’
‘Levar a coisa?’
‘É, saber como conduzir bem uma relação, ter a manha!
‘Ter a manha Braz, faça-me o favor!’
‘Pelo menos aceite, as mulheres são enigmáticas’
‘Ora, tão enigmaticas quanto os homens’
‘Não acho, nós somos previsíveis’
‘E nós? Eu sou imprevisível?’
‘Freud, lembra, foi você quem me disse o que ele escreveu sobre como as mulheres, como era mesmo, elas são impulsivas?”
‘Não, a palavra não era essa, e não tem nada a ver com este texto ai”
‘Bem, era algo assim”
‘Era muito mais sofisticado, dizia que o feminino era ignorado, no sentido de quase incompreensível.’
‘O que o que você acha disso?’
‘Acho que todos somos meio incompreeníveis”
‘Eu já acho que as mulheres são mais...misteriosas’
‘Na cabeça dos homens? Talvez’
‘Eu te compreendo’
E Braz se aproximou para me beijar, eu aceitei. Foi mais do que um beijo e tudo evoluiu muito rapidamente. Resolvi interromper antes do fim. Estava muito afetada pela ideia de que as mulheres podem ter a queda pelos tolos para me entregar naquele momento. E eu já desconfiava que havia alguém à espreita.
Pensei em minha ex-analista. O que será que ela diria sobre o que acabara de acontecer agora? Que eu estava racionalizando? Que deveria me entregar ao fluxo do desejo? Mas para onde o desejo estava me conduzindo afinal?
Bem. Não importa mais, não estava mais cogitando me submeter à análise alguma. Nem à síntese. Nem a nada.
Só conseguia me angustiar com a idéia de que estavamos a caminho do término. E os términos mesmo não sendo infinitos, são infindos.
Continua